2018-10-02

Poeta MANUEL TAVARES RODRIGUES LEAL (1941-2016)

(In memoriam)



Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016)

Soube agora, com muito pesar meu, que o poeta MANOEL LEAL já partiu deste mundo.
Era uma amizade antiga – anterior ao 25 de Abril (1974) – que terá começado por volta dos meus 20 anos. Mais tarde, a vida levou-nos por caminhos diferentes e perdi-lhe o rasto, já faz muito tempo.
Deste infausto acontecimento, tomei conhecimento através de um texto da autoria de LUÍS DE BARREIROS TAVARES, filósofo, escritor, crítico e grande conhecedor de parte da vastíssima obra inédita de M. Leal[1]. Seu grande amigo e admirador, colaborador da publicação digital «Revista Caliban»[2], dedicou-lhe aí vários textos de divulgação, dos quais colhemos algumas informações e fotos.  
A notícia da sua morte trouxe-me recordações dos nossos longínquos tempos de convívio, num grupo de amigos que deambulava então nos cafés de Alvalade, os quais aqui não posso deixar de lembrar.
Sei que o M. Leal deixou cerca de 100 cadernos inéditos, de prosa-poética, alguns deles com cerca de 100 poemas. 
São milhares de pequenos textos, agrupados por temas, dos quais o M. Leal ainda me mostrou alguns numa das visitas que fiz a sua casa de Lisboa onde morava com a sua mãe, no Bairro das Colónias, aos Anjos.
Manoel Leal (1941-2016)
Esta sua casa ostentava uma decoração antiga e intimista onde predominavam as cores das madeiras escuras dos móveis, assim como os tons ocres das paredes, numa profusão de livros e papéis, iluminada por uma luz quase sempre velada: espécie de laboratório onde abrigava a sua timidez de poeta incompreendido e dava azo ao seu génio criativo, pela noite dentro.
Da sua imensa obra, publicou ao todo uma mão cheia de poemas em algumas revistas literárias de circulação restrita e, já quase no fim da vida, alguns livros, em edição de autor.
Este infindável espólio, quase todo inédito, deve ser estudado antes que se perca: coisa que ele não pode fazer por falta de editor e de recursos.
O Manoel detestava visceralmente a política e sempre recusou fazer parte de capelinhas partidárias que o promovessem, ao contrário de muitos autores que pontificam neste país …
Quem sabe se, os milhares de textos que ele nos deixou dispersos por numerosos cadernos – há semelhança de outros casos do passado – só serão valorizados muitos anos depois da sua morte...
Nestes registos, ia anotando os seus textos poéticos, bem alinhados, numa caligrafia miudinha de maiúsculas, cheia de rasuras e emendas. Para ele, a maioria dos poemas nunca estavam definitivamente acabados. Por vezes, para além das rasuras que lhes ia fazendo ao longo do tempo, elaborava segundas versões.
Usou vários pseudónimos literários, retirados dos nomes dos seus antepassados, facto este que passou desapercebido à maioria dos seus críticos, os quais desconheciam a sua genealogia.
Manoel Leal (1941-2016)
Assim temos os pseudónimos MANOEL DA CUNHA E MELO (de uma avó de Viseu), na «Voz Equívoca» (1975); MANOEL FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO PEREIRA DE GOUVEIA (de um aristocrático 5.º ou 6.º avô natural de Ferreira de Aves), na «A Duração da Eternidade» (2007), na «A Imperfeição da Felicidade» (2079, e na «A Noção da Inocência» (2008); e ainda MANUEL DE SOUZA-VALENTE (de uma trisavó de Ferreira de Aves), na «Lírica Translúcida» (2010).  
Há ainda nos seus manuscritos um outro pseudónimo: MANOEL PEREIRA DE GOUVÊA (tirado dos apelidos do já citado 5.º ou 6.º avô). 
O seu interesse pela poesia era obsessivo, quase doentio; uma permanente batalha sofrida com a palavra, muitas vezes travada à mesa do café. Para a então irreverente juventude de muitos dos seus amigos e colegas de Direito, que estavam interessados em coisas mais efémeras e mundanas, as actividades e conversa literária do M. Leal, eram tediosas ... Porém, tinha um pequeno núcleo de pessoas que o estimavam.
Manoel Tavares Rodrigues-Leal
(1941-2016)
Eramos então quase todos estudantes pré-universitários ou universitários em início de curso, fúteis, despreocupados e hedonistas, que esbanjávamos a vida nas tertúlias de café, bares e discotecas de Lisboa; nomeadamente na zona do Areeiro e da Avenida de Roma, que após o 25 de Abril se tornaria num dos centros da movida lisboeta.
Foi por aí que conheci o M. Leal, quando este era aluno da Faculdade de Direito, curso que frequentou até au 5.º ano, mas não concluiu.
Detestava os grandes espaços de convívio então aí existentes, apesar de os frequentar episodicamente – Café Roma e Capri na Av. De Roma; Café Londres, Las Vegas, e Pastelaria Mexicana na Pç. de Londres –, preferindo os locais mais pequenos e reservados para conversar com os amigos, muitas vezes em sussurro e com a voz tremelicada.

Na altura em que o conheci, nos finais da década de 60, além do meu interesse pela Artes Plásticas, eu era um discreto apreciador da poesia, pois ia rabiscando uns versos, pelo que o M. Leal exercia algum fascínio sobre mim.
Basicamente ele era muito educado, discreto, solitário e introvertido, cuja obsessão pela criação poética acabava por dificultar um pouco o seu relacionamento social com as pessoas comuns. Porém, pairava sobre alguns de nós, como uma espécie de ser superior, um pouco invulgar.
Recusava as futilidades mundanas da vida. O seu grande, avassalador, e viceral objectivo, era a poesia. Era um apreciador dos poetas metafísicos e malditos, tendo deixado registado num seu caderno: "Não fiquei nem em Rimbaud nem em Pessoa. Não sei se a minha poesia traz algo. Mas escrevo o que quero."
Imagino o quanto sofreu, pelo seu génio poético não lhe ter sido reconhecido em vida …


  

Falava muito pouco da sua família, mas sabemos que tinha irmãos, sendo ele o mais novo.
Sabemos, ainda, que era primo do Dr. Francisco Sousa Tavares (1920-1993), advogado e político, casado com Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), escritora e poetisa, que o M. Leal muito admirava, com a qual chegou a conviver na sua casa de férias em Lagos, e à qual um dia não se coibiu de dizer: “Não gosto dos seus poemas políticos". Era a sua aversão à política…

Quando viu a luz do dia já o seu pai contava 48 anos, tendo ficado órfão deste quando contava cerca de 14 anos, pelo que a vida não lhe terá sido fácil.

Era filho de MANUEL RODRIGUES LEAL (1898-1955), jornalista, natural de Vila Verde, concelho de Alijó, que ficou conhecido pelo pseudónimo «MANOEL VILAVERDE» devido à sua origem geográfica. Presumimos ser ele o autor de um soneto de cariz religioso intitulado “A morte de Soror Thereza do Menino Jesus», o qual foi publicado na revista «Contemporânea» (n.º 3, julho/Outubro 1926, p. 119).
Da figura paterna, costumava dizer, com algum carinho, que foi um “jornalista que passou por grandes dificuldades”; como muitos outros da sua época, acrescentamos nós.  Porém, segundo conseguimos apurar, este viveu num ambiente muito rico de vivências culturais, convivendo nas tertúlias dos cafés do Rossio em Lisboa, e aí estabelecendo laços de amizade com muitos intelectuais da sua época. Alguns deles: António Botto (1897-1959), poeta; Augusto de Santa-Rita (1888-1956), escritor e poeta, irmão de Santa-Rita Pintor; António Ferro (1895-1956), jornalista e responsável pela política cultural do Estado Novo; Fernanda de Castro (1900-1994), escritora e poetisa, casada com António Ferro; Pedro Teotónio Pereira (1902-1972), destacado político e diplomata, foi um dos grandes obreiros do Estado Novo, sobre o qual deixou alguns escritos; Almada Negreiros (1893-1970), pintor, poeta, ensaísta, que entrevistou; e António Sardinha (1887-1925), poeta, historiador, político, e um dos ícones do integralismo lusitano.

Manuel Leal, e sua mãe.
D. Maria da Conceição,
no Rossio, em Lisboa.
A sua mãe, D. MARIA DA CONCEIÇÃO DE MELO TAVARES (1904-1994), a «Tanina» para os íntimos, era uma simpática anciã que ainda conheci na sua casa dos Anjos onde vivia com o M. Leal. Por vezes ele referia a proveniência desta senhora, com origem numa “família aristocrática do Centro do país” (Viseu). Certamente referia-se aos seus antepassados CUNHA e MELO de Viseu, aos COELHO de MELO de Souto de Lafões, e aos FERREIRA DA MOTA CARDOSO de Ferreira de Aves (dos quais tirou os seus pseudónimos literários); uma família abastada e letrada, com vários licenciados em Direito na Universidade de Coimbra – que ele terá conhecido por vagos relatos familiares, e nós conseguimos agora explicitar através da genealogia.
Esta senhora fazia parte de uma prole de sete filhos das segundas núpcias de HENRIQUE DE ARAÚJO GODINHO TAVARES (n. 1855), proprietário e industrial, então viúvo, natural de Vigia, Pará, Brasil, casado nas suas segundas núpcias a 17-IV-1893 na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Lisboa, com D. MARIA DO NASCIMENTO DA CUNHA E MELO (n. 1866), natural de Viseu, da qual retirou um dos seus pseudónimos, filha do Dr. AGOSTINHO DE SOUSA VALENTE FERREIRA DA MOTA (c. 1863), proprietário, formado em Direito na Universidade de Coimbra (27-V-1863), natural de Aldeia Nova, freguesia de Ferreira de Aves, concelho de Sátão, no distrito de Viseu, e de sua mulher D. MARIA DA PIEDADE DE MELO E CÁCERES, natural de Souto de Lafões, concelho de Oliveira de Frades.

As anteriores primeiras núpcias de HENRIQUE DE ARAÚJO GODINHO TAVARES (n. 1855), foram celebradas a 29-X-1877 em São Sebastião da Pedreira em Lisboa com D. MARIA DA PURIFICAÇÃO CARDOSO DE SOUSA (n. 1864), natural de Alcântara, Lisboa, falecida em Belas, da qual teve 3 filhos, entre os quais estava o pai de FRANCISCO DE SOUSA TAVARES (1920-1993), casado com a emérita poetiza SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN (1919-2004), da qual o M. Leal era admirador.

Seu trisavô, filho de um homónimo Dr. Agostinho, era JOÃO DA CUNHA FERREIRA DA MOTA E ALMEIDA (n. 1836), nascido a 12-XII-1836 na Quinta de Fontão, Lamego, casado em segundas núpcias com D. MARIA JÚLIA DE SOUSA VALENTE, natural da Quinta da Chapeleira, Ferreira de Aves.


André Ferreira da Cunha
e Almeida da Motta
Cardoso Pereira de Gouveia
(1788-1869)
Uma das origens deste ramo familiar, estará numa das três filhas de ANDRÉ FERREIRA DA CUNHA E ALMEIDA DA MOTTA CARDOSO PEREIRA DE GOUVEIA (1798-1869), moço fidalgo da Casa Real (9-X-1821), formado em Direito pela Universidade de Coimbra (10-VII-1820), coronel e comandante interino do Batalhão de Voluntários Realistas de Tomar (7-III-1834). Foi senhor da casa e morgadio de Fontão em Tabuaço (Fontão Seco), cuja belíssima Casa de Fontão, em Tabuaço, apresenta uma pedra de armas esquarteladas: 1.º - PEREIRA, 2.º - FERREIRA DA MOTA (?); 3.º - CARDOSO, e 4.º - ALMEIDA (?); sobrepujado por um elmo cerrado, encimado pelo timbre de PERREIRA.
Nasceu a 10-XI-1798 na Casa do Outeiro, em Ferreira de Aves, concelho de Sátão, filho de João Cardoso Teixeira da Mota e Gouveia, e veio a falecer já viúvo a 6-VIII-1869 em Ferreira do Zêzere, terra da sua mulher, D. MARIA BENEDITA DA COSTA RESENDE MALDONADO DA SILVEIRA, senhora das Casas da Cabeça do Carvalho, da Quinta do Adro e do Vale, em Ferreira do Zêzere.
Foi deste ramo familiar que o M. Leal tirou os seus pseudónimos literários, atrás referidos: MANOEL FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO, e PEREIRA DE GOUVEIA.


Armas da Casa de Fontão.
Esquarteladas de: 1º - PEREIRA,
2º - FERREIRA DA MOTA(?),
3º - CARDOSO, e 4º - ALMEIDA(?)
Casa de Fontão, Tabuaço, Viseu.


Casa do Adro, Ferreira do Zêzere.

O M. LEAL conviveu com alguns intelectuais da sua época – poetas e escritores –, mas  era nos amigos das tertúlias de café e colegas de faculdade, moradores no bairro que preferencialmente frequentava (Areeiro e Alvalade), que procurava arrimo.

Algumas das suas amizades literárias, dos finais dos anos 60, princípio dos 70, são conhecidas. Entre elas, estão alguns intelectuais do icónico e já desaparecido CAFÉ MONTE CARLO, na Av. Fontes Pereira de Melo.  Aí privou com o poeta HERBERTO HELDER, o poeta e crítico literário GASTÃO CRUZ, assim como a escritora MARIA VELHO DA COSTA.
Manoel Leal
Conheceu nos cafés da Avenida de Roma o escritor EDUARDO PRADO COELHO, assim como o brilhante crítico de arte RUI MÁRIO GONÇALVES.
O MÁRIO SÉRIO, “ilustre desconhecido, que frequentava o café Copacabana, era um apaixonado por Brecht, Stanislavsy, Rimbaud, Verlaine, entre outros”, segundo refere o M. Leal nas suas notas. Este era funcionário bancário, escritor, e um dos críticos e dramaturgos mais interessantes e ignorados no panorama do teatro português contemporâneo. Deixou-nos cinco boas peças, nenhuma delas posta em cena. A ele se ficou a dever a encenação, pela primeira vez em Portugal, de trechos da obra de Bertolt Brecht. No fim dos anos 60, dirigiu e encenou Grupo Cénico do Instituto Superior Técnico.
Foi ainda amigo do poeta CRISTÓVAM PAVIA – pseudónimo que usou, entre outros –, cujo nome completo era FRANCISCO ANTÓNIO LAHMEYER FLORES BUGALHO, ao qual dedicou alguns poemas e, tal como ele, era uma personalidade em conflito com o mundo.
Manuel BoavidaSantos e Manoel Leal,
1970?
Quando o conheci, frequentava um grupo de amigos que tinham como paradeiro a Pastelaria Cinderela ao Areeiro, nos finais dos anos 60, onde tinha um grande amigo, o JOSÉ MANUEL BOAVIDA DOS SANTOS, então residente no mesmo prédio, com o qual tinha uma grande similitude de feitio, reservado e tímido, tendo com ele planeado a abertura de uma Livraria/Tabacaria – o Manoel era um inveterado fumador – negócio este que não chegou a concretizar-se. Quanto ao BOAVIDA, ainda chegou a inscrever-se em medicina, acabando por exilar-se em França em Maio de 1972, em cuja universidade da Sorbonne em Paris se formou em Filosofia, de onde regressou a Portugal em 1994, e hoje é um distinto catedrático do Departamento de Comunicação e Artes da Universidade da Beira Interior (Covilhã). Por este motivo o M. Leal perdeu um dos seus grandes amigos, acabando por se mudar, com outros frequentadores deste grupo, para outro centro de convívio, recentemente inaugurado e na moda: a Pastelaria Moinho Vermelho (actual Maria Canela).
Neste grupo de amigos da Cinderela, entre muitos outros, ainda recordo alguns.
MANUEL AMORIM, então um singular aspirante a pintor que se fazia acompanhar quase sempre da sua caixa/estojo de pintura em mogno, que acabaria também ele por se exilar em Paris por volta de 1969, na companhia do Manuel da Silva Ramos, escritor covilhanense então galardoado aos 21 anos de idade com o Prémio de Novelística Almeida Garrett (1968), pelo seu romance Os Três Seios de Novélia. Este autor, num dos seus assomos de excentricidade surrealista que então cultivava, chegou a passear-se no Chiado, num impecável terno preto de muito bom corte, com uma pequena gaiola contendo um canário amarelo... O AMORIM, em Paris, acolheu-se inicialmente à protecção dos célebres pintores Maria Helena Vieira da Silva e seu marido Arpad Szénes, tendo aí frequentado alguns dos melhores ateliers desta época, só regressando a Portugal no início do século XXI.
Manoel Leal e António Matos Guerra;
Versailles, Paris, 1973?
Não sendo possível recordar todos os então muito jovens elementos do grupo, não posso deixar de referir: os dois irmãos ROOVERS DE ALMEIDA (Arq. Luís e Paulo); o ANTÓNIO MATOS GUERRA (e seu irmão JOÃO), que veio a ser engenheiro civil, com o qual o M. Leal chegou a fazer uma viagem a Paris no início dos anos 70 onde visitou alguns amigos exilados; e a MARIA MARQUES CALADO que viria a ser uma distinta investigadora e docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.
Com a saída para o exílio de vários elementos deste grupo, e o abandono de outros logo no início dos anos 70, muitos elementos, incluindo o MANOEL LEAL, debandaram para outros espaços de convívio, como a Cervejaria Munique (ao Areeiro), a Pastelaria Moinho Vermelho e a fronteira cervejaria O Pote que então estava aberta até altas horas da madrugada e era palco de altas cachaçadas e ponto de encontro de militantes radicais da direita e da esquerda de então (na Av. João XXI), uma espécie de quartel general da boémia residente nestas paragens, não descurando muitas outras casas do género nas imediações.
Quanto aos colegas de Direito do M. LEAL, com assento no Moinho Vermelho, muitos há que já não recordo.
Manoel Leal
Ainda lembro o seu – e meu – grande amigo GUSTAVO FILIPE SARAIVA (f. 9-IV-2010), que viria a ser advogado e era o mais boémio de todos nós, falecido prematuramente. Ambos tínhamos um comportamento extrovertido, por vezes um pouco histriónico, o que suscitava algum prurido entre os elementos mais sorumbáticos do grupo.
Havia ainda, mais esporadicamente, o PAULO FILIPE SARAIVA, irmão mais novo do anterior, estudante de medicina e actualmente médico, então o grande desportista do grupo que era jogador da prestigiada equipa de rugby do CDUL – Centro Desportivo Universitário de Lisboa.
O JOÃO VARGAS MONIZ, de temperamento mais grave, veio a ser um alto funcionário da administração pública, assessor de vários governantes, chefe de gabinetes e secretarias gerais, gestor público, que, com o seu engenho, deu corpo às Lojas do Cidadão.
O JOÃO COITO, afável e com grande fineza de carácter, falava quase sempre em sussurro e tinha sorriso tímido; uma jóia de pessoa e um amante dos livros que trabalhou na Livraria Barata (Av. De Roma) e na livraria do Centro Comercial Arco Iris (Av. Júlio Dinis, ao Campo Pequeno) que se tornaria numa das melhores livrarias de temas jurídicos, graças à sua iniciativa. Concluiu o seu curso de Direito e veio a ser magistrado judicial.

Manoel Leal.
Quanto ao M. LEAL, foram-lhe conhecidas algumas paixões – parte delas platónicas –, as quais motivaram alguns dos seus melhores poemas à beleza feminina.
Foi por altura da frequência do Moinho Vermelho, que o M. LEAL conheceu a ANA, à qual uniu o seu destino, enlace este que não duraria muito tempo, o que então lhe terá quebrado o ânimo e partido o coração.
É sabido que foi um dos melhores alunos do Colégio Académico, onde esteve sempre no quadro de honra durante o secundário, além de ser dotado para o estudo do Direito onde chegou a fazer 21 cadeiras com razoável aproveitamento, chegando até ao 5.º ano. Porém faltava a muitos exames, por achar, infundadamente, segundo referiam os colegas, não estar preparado para fazer uma boa prova. Acabou por não concluir o curso, que abandonou.

Manoel Leal
Com o acentuar da idade, foi-se tornando uma figura um pouco peculiar, mais sorumbático, procurando cores sombrias para vestir, sempre com um livro ou outro debaixo do braço, e folhas de apontamentos onde tomava notas que ia rasurando e reescrevendo.
Arranjou um emprego no Estado (Ministério do Trabalho?), ao qual não se terá adaptado, acabando por ser “transferido” para uma qualquer função subalterna na Biblioteca Nacional de Lisboa, da qual ele não gostava, e onde o encontrei muitas vezes no início da década de 80, quando me confessou ter que “aguentar para pagar as contas”.

A última vez que o encontrei, fui numa situação inusitada.
No fim de uma cálida tarde de Verão, já a beirar a entrada do Outono, fui até à Praia do Rei na Costa da Caparica para dar um mergulho. Quando estava estendido no imenso areal semideserto, vejo ao longe, ao correr da linha de rebentação, vindo do lado da Costa da Caparica, uma solitária e estranha figura a caminhar lentamente na areia, vestida com um convencional fato preto, calças um pouco arregaçadas, com as meias e sapatos pretos numa das mãos, e um ou dois livros na outra…
Para meu espanto era o M. Leal que lá vinha ao longe, com uma passada curta. Mal me avistou, logo se dirigiu a mim, com o suor a escorrer-lhe em bica da sua face. Numa breve conversa referiu ter saído mais cedo do emprego para vir apanhar um pouco de ar … Trocou comigo mais algumas afáveis palavras de circunstância e seguiu o seu caminho, como quem passeava tranquilamente num qualquer boulevard citadino.
Era este o inenarrável MANOEL LEAL que eu conheci: um outsider, um pouco excêntrico, sensível, inteligente e criativo; sempre insatisfeito com o mundo que o rodeava, cujas atitudes por vezes invulgares suscitavam alguma curiosidade e admiração pela parte de quem com ele privava.
Hoje, com muito pesar meu, lamento ter perdido o contacto com ele.
Nunca mais o vi.

Que esteja em Paz.

João Trigueiros (Jotri)
Setembro / 2018




Obra de MANOEL LEAL
(um provável Fernando Pessoa, ainda desconhecido)


Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016)

Deixou milhares de belos poemas e textos de prosa poética, muitos dos quais dedicados a vários autores que admirava, alguns dados a conhecer pelo seu amigo.
A FERNANDO PESSOA, e aos seus principais heterónimos (Álvaro de Campos, Ricardo Reia), dedicou uma profusão de textos poéticos: «E se fôssemos, / Fernando, ao brandy imaculado da Metafísica, Pessoa sempre impessoal, / ubíqua figura».
Sobre ARTUR RIMBOUD, o qual muito admirava e cuja alma inquieta lhe inspiraria alguma afinidade, escreveu belos poemas e textos, pois, este poeta maldito, segundo refere, “Que Rimbaud, em mim, pessoal, ressoe”, pois viveu “Uma Época no Inferno como a minha”, e “entre nós existe voz, conversa, alguém diria afastada da fonte”…

Que o futuro lhe faça justiça e a sua imensa obra inédita – por onde andará? –, seja preservada e entregue à Torre do Tombo para ser colocada à disposição dos investigadores.
Quiçá estaremos na presença de um novo Fernando Pessoa, que nos deixou o seu baú de manuscritos, para nosso deleite…


LIVROS PUBLICADOS
(sob diversos pseudónimos)

MANOEL DA CUNHA E MELO
«Voz Equívoca», Ed. De autor, 1975.

MANOEL FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO
- «A Duração da Eternidade», Ed. de autor, Janeiro de 2007.
- «A Imperfeição da Felicidade», Ed. de autor, Dezembro de 2007.
- «A Noção da Inocência», Ed. de Autor, 2008.


MANOEL DA CUNHA E MELLO
- «Fidelidade de um Fauno», 2007-2008.

MANOEL DE SOUZA-VALENTE
- «Lírica Translúcida», Ed. Autor, 2010.
























Manoel Tavares Rodrigues-Leal
 (1941-2016)
ELSA RODRIGUES DOS SANTOS (1939-2012), presidente da Sociedade da Língua Portuguesa, autora de uma vasta obra de divulgação de outros autores, dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e das literaturas africanas de língua portuguesa.
Deixou-nos alguns textos sobre os poemas de "Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo”, pseudónimo de Manoel Tavares Rodrigues-Leal:

- 1º texto –

Sobre «A Noção da Inocência» (2008)

Do seu primeiro livro, A Duração da Eternidade, eu dizia: «Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e da marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da palavra poética.»
E terminava: «Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retomando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas».
Com a Noção da Inocência confirmamos a qualidade da escrita poética, projectada não só neste terceiro livro, como num quarto já muito próximo de nos chegar às mãos.
E se no primeiro livro o Poeta se confrontava com o ofício da escrita, como um acto de alegria e de dor, e ainda como o binómio/efemeridade, neste segundo livro, o sujeito poético remonta à idade da inocência, à beleza quase perfeita dos corpos e à descoberta do amor.

a infância ainda ecoa. ainda eclode.
tão íntima. tão lúcida.
atravessa os dias. como uma seta.
que inflige ternura.

                                   X

a exuberância crucial do desejo. ocorre. essa desmesura.
essa distância dos corpos. e das colinas. e sua errância. e efémera.
irrestrita. mas triste. como descrevê-las. velas e loucura.
e toda a adolescência. magoada. que não deslumbra.
mas ainda navega. navio esbelto. que não foge do fogo.
nem exorbita da penumbra.

A idade da inocência cumpre-se como um tempo de expectativa, de curiosidade, como um fruto ainda verde, mas promissor de um outro tempo em que Eros e Apolo se unem, insinuando uma maturidade sensual.

acordo para o verão. vulnerável.
inaudível.
que cai como uma bênção. ou um anátema.
acordo para o teu corpo. que é um corcel. ágil e alegre.
moreno. como a rosa da tarde. que declina. e se rasga. cruel.
e que. de um prazer íngreme. se alague.

O sujeito poético transporta, porém, o germe da dúvida, da perenidade do amor, da dor que o fim implica e di-lo nos versos:

ah ter eu a leveza de haste.
de uma primavera remota. por que tu te enfeitiçaste.
a noção. incólume. do meu íntimo desastre.

Confrontam-se agora dois tempos: presente/passado transfigurados em realidade/ memória, em que nos dias longínquos da juventude os corpos eram belos, o amor, emoção e prazer. No presente, a vida flui para um destino irremediável, rio sem regresso.

jamais teu corpo florirá. como outrora
floriu. jamais jorrará a seiva ardente.
que jorrava. nos dias auspiciosos e felizes

agora teu corpo cumpre o seu destino. inexorável
(...)e inocente. que é a morte. perene. obscena. irrespirável.

Visão pessimista e dolorosa só colmatada pela recordação da mãe, da casa, porto seguro, sem enganos e sem traições, ultrapassando a efemeridade da vida e o «olvido vil da morte»

a infância perfaz-se em ti. ó
mãe mansa.
ó casa. ilesa.
onde vivi. e o ouro do gesto floria.
sem engano.
sem a dubiez das
noites.
e o gesto floria. exacto.
e nunca mais se extinguiria.
ó mãe. mansa e imensa.
cujo rosto jamais se apartará de mim. e que eu ainda vislumbro
rosto incólume. que eu sempre invocarei.
contra o olvido vil da morte.

Reiterando por outras palavras o que disse anteriormente, a poesia de Motta Cardôzo é trabalhada no ouro da palavra, numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o pode fazer. Por isso, é urgente que a sua poesia seja enquadrada na nossa melhor literatura.

Elsa Rodrigues dos Santos

- 2º texto -
(Publicado no boletim literário e no site de recensões da SLP – Sociedade da Língua Portuguesa)

Três epígrafes, duas de Rimbaud e uma de Ricardo Reis abrem o livro sob o signo da descrença da vida e da existência de liberdade.
«Merde à Dieu» diz Rimbaud, «Porque só na ilusão da liberdade, a liberdade existe…» acentua Ricardo Reis numa das suas Odes. Assim, logo à partida as epígrafes apontam-nos para uma poesia com um certo cepticismo e mágoa.
O primeiro poema é uma reflexão sobre o ofício da escrita e o autor fala-nos de «loucura», de «uma frustre maré interior», «o inexorável rigor» e «depois a remota eternidade de um corpo».
Jogando com o conceito de «literatura», que é ofício eterno, mas também «leitura e ócio», o poeta termina ironicamente rimando com a palavra «literadura», porque a escrita, se é algo de eterno, implica também sofrimento.
No poema II, o poeta, na sequência do primeiro, afirma. «e não dura o dom». Confronta-se, então, o sentido de eternidade com o de efemeridade, isto é, eternidade, na qual o poeta acredita e efemeridade que constata. E aí reside a dor do sujeito poético, entre o prazer fugidio das palavras e o projecto de escrita para a eternidade que se confundem com o vazio dos dias entre «a vã cobiça de um corpo», «prazer efémero», o desejo de amor e «a morte suprema» desse mesmo amor, dessa mesma vida.
Fica apenas a ilusão de que a sua escrita permanecerá eternamente («luar de letras consentidas» (…) «assim as guardo. cioso» «até à circulação da eternidade. Suponho eu.»)
No poema III, o «eu» surge em forma de Outono que «vem todos os anos. outonos suaves. como a mãe gostava. eternos e não duram muito.»
«Outono», não apenas como símbolo do declinar das estações e da existência, mas como algo de doce, de sensual, de recordação de um amor que «morreu há muito e é eterno e outono talvez.» Eterno porque volta sempre, ainda que passageiro.
Institui-se com persistência o binómio eternidade/efemeridade na escrita e sobretudo no amor porque «até a eternidade morre vilmente» (V).
«Cristo morreu como se fosse eterno/ como se fosse manso rio de um continente desconhecido» (VI).
Eros e Tanatos se digladiam entre o ser e o estar, entre a essência e a vivência.
Erotismo e vida, erotismo e morte (oh vã comédia da vida) fundem-se na alma do poeta através da arte das palavras.
Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e a marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética.
Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas.

Elsa Rodrigues dos Santos

Este texto encontra-se publicado no site de recensões da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).




POESIA

A RIMBAUD

A dicção dos dias tem vertical importância:
Desliza como vago rio que corre para a Foz,
E que festa apetece quando morre o que se supunha imortal.
Nada sei, Rimbaud morre em Marselha, e entre nós existe voz, conversa, alguém diria afastada da fonte.
E que importa a poetas malditos o que os outros, latente ou expressamente, ladram: é uma oceânica vogal talvez…

Lx. 9–7–76
Caderno: Livro do amador nómada.

Sob o som vegetal da nudez,
(Deslizando o comboio), relembro a metamorfose da morte de Rimbaud:
Eis a ilação de uma profusa e eloquente loucura!…
Abençoado seja Rimbaud pela sua comovida lição de nostalgia e brancura,
Omnipotente lua de primordial unidade… Assim o acolho em meu regaço, e talvez
Que Rimbaud, em mim, pessoal, ressoe.

Cintra — Lx. 8–2–77
Caderno: Do ócio e meditação em Cintra


O retrato de Rimbaud oscila.
  “Uma Época no Inferno” como a minha. São a imaginação latente do Inverno
E depois “Pierrot le Fou”, de Godard: assistimos
Ao filme e é Rimbaud, a liberdade ilimitada de Rimbaud,
sofremos sismos.
E minha voz, nua, voou: é vida perene.
Ouço o violino de Paganini:
Meu desejo o ergui, e algures o perdi.
Oh luxúria de Outono omitida: nas almas já neve.
O que, de perfil, me desista, quem o escreve?
E oscila o retrato que eu hei-de destruir.
Marselha, sua morte comovida, comovente… mas chove uma chuva de fingir…

Lx. 28–8–76
“O divino imanente no humano”


O reino de Rimbaud

“Une Saison en Enfer”

Como conjugar o verbo divino e duplo com o uno,
o objecto inscrito com a mera descrição?
O livro reabre-se: é o nome nocturno de Rimbaud:
obscura habitação de beleza, sua paixão clandestina, rapto, repto.
Quem o invocou, nomeou as mãos decepadas do prazer, o uno dúplice e sua súplica.

Lx. 2–1–75
Caderno: Limae Labor


A verdade essencial da poesia radica na revelação. Aquilo que dota de mediunidade e génio a poesia de Jean-Arthur Rimbaud é a verdadeira revelação (a revelação do ser e do real) e não a trivial, a verdadeira navegação e não o porto (digamos, a morte…)…
A criação poética implica a meditação e a habitação da transcendência do autêntico acto poético, da sua interrogação imanente e da possível resposta ao real que, em Rimbaud, é intuída e lhe é revelada: não divinamente como é comum em certa poesia, mas humana, visceralmente humana, como algo de indelével.
Navegação, sim, mas nua e una, do verdadeiro devir humano enquanto desastre, erro e errância do ser assumidas, e até resumidas, que Rimbaud exemplarmente encarna.
Assim se cumpre, se exaure, com Rimbaud, a missão essencial da poesia que consiste em revelar as raízes humanas profundas, afinal o verdadeiro dom divino que aquela encerra e corresponde à ideia do mal, subjacente ao autêntico acto poético.

 Lx.ª 15/11/96
Caderno: Ser insular


Ilha de Lesbos

É sol do que sou, cativo por pensamento.
Uma nostálgica nobreza, algures pagã.
Desejo desejar o desejo do seguinte: manhã acesa
que lembro grega e lendária: Sappho
mulher cuja linhagem, linguagem poética
era transeunte, beleza ajoelhada, divina e terrestre.
Habita agora o Olimpo, linda, serena, sábia como convém
a um poeta que, despojado, habita sua ilha, toca sua harpa, mapa de ninguém.
O seu limpo pensamento, eterna adolescente, segregando desejo, segredo, semente.

Lx. 3–6–76
Caderno: O umbigo da beleza


A PESSOA

Olha Daisy, quando eu morrer
espero que partas definitivamente para o Minho.
Não vais em busca do cadinho
que o já tens, grave e lindo, aqui em Lisboa.
Olha Daisy, quando eu não morrer
em boa verdade, aconselha-te a renascer
para que contigo case,
longe vá o agoiro e a frase.

Lx. 23/10/84
Caderno: O Sul das Maravilhas


As cartas de amor são ridículas, meu velho Álvaro de Campos,
mas ridículas, dizias, eram aqueles que não escreviam singelas cartas de amor.
De amor maiúsculo pingou um pingo esfíngico e gordo. E se fôssemos,
Fernando, ao brandy imaculado da Metafísica, Pessoa sempre impessoal,
ubíqua figura.

Era a frescura de risos de raparigas lindas, límpidas, tão íntimas, eram risos
trincados de rosas sem rigor nem alma.
E há Bach, Seixas, Mozart, uma longa lista de sábios em música,
afogados no tempo; mas tu Pessoa és sempre a geométrica pessoa trágica e traída.
Esquecia-me Pessoa: ambos somos ridículos em não escrever cartas ridículas
de amor, pois é manhã marcada, e quem trabalha cedo amanhece
mas com aqueles sorrisos, risos sonâmbulos, risos trincados pelas vidas,
amargos sorrisos maculados de quem, na pele e no rosto, ínvios caminhos conhece.
Juventude, juventude ressurge, mas jaz a arte de matar-me-te, arte articulada à vida.


Belas — 26–9–76
Caderno: Fragmentos de um livro dividido (anónimo do séc. XX)

Às vezes, visito as flores malditas do meu pensamento,
e que logro: lembra Pessoa e suas personae.
Não tem fórmulas felizes, domingos banais, aliais,
mas toda a estranheza de ser pensamento.
E o pensamento, a estranheza de o ser,
de que, pranto de prata e profuso e diverso desagua,
onde o verso se diverte em as têmporas e nas cãs do poeta,
que parte, se ausenta, de sê-lo meramente. E, ao amanhecer, não tem horizonte nem meta…

Lx. 3–7–76
Caderno: Livro do amador nómada


William Turner

A caligrafia da alegria e da loucura é frágil, abençoada:
Li, algures, em um antigo manuscrito iluminado.
Então, náufrago, banhei-me ébrio no primitivo mar.
(o firmamento, o pensamento dos teus seios de mármore e marfim)
O poeta, o pintor, embriagavam-se
em breves páginas de praias, nas vagas de um espírito crepuscular
e vagabundo (vogais acesas de Primaveras, propagadas).
Teciam as estrelas intactas, cabeças de doçura e de espanto,
porventura pranto.
Turner aguardava exangue (e exemplar), nos seus quadros, a claridade opaca
da mensagem imortal da morte divina.

Lx. 11–8–73
Praia da Areia Branca — 24–8–73 …


Artaud

Artaud — meu querido mestre da loucura
inspirai-me a pobre poesia quotidiana. Acordada
quando a dor se crava na boca mais recente.
Afinal, Artaud, também sou actor desse teatro transeunte
que tanta gente tem.
Eu poiso o meu gesto na tua poesia, dantes, de amanhã
e é tão nítida, tangente a tua loucura que ali jaz, que eu enlouqueci.
Afloro a loucura e há harpas de beleza na loucura que na tua poesia li.

29/05/76  
Do caderno: O umbigo da beleza


a Ricardo Reis

Condenaram-me os deuses à lisa loucura
Terrestre. Aceita, isento, livre, a dádiva antiga e divina. Celebra
A alma incólume das odes de beleza, as árvores imemoriais da alegria.
Sê o rei de um reino povoado de puros brilhos e espelhos de inocência.

Lx.- Março de 73
Caderno: Limae Labor


No reino de Ricardo Reis
Cada instante efémero é intacto, transeunte e antigo.
A nítida ideia dos deuses emerge jovem e pagã
Como a opulenta arquitectura de um jardim
      suspenso na manhã.


a Alberto Caeiro

Sê simples e calmo como Caeiro o era
Imperturbável percorre o teu caminho como o
        dia que amanhece
E se não distingue dos dias adiados e
        extintos como da recordação dos dias que
        meramente o serão


a Ricardo Reis

No reino de Ricardo Reis
Cada instante efémero é intacto, transeunte e antigo.
A nítida ideia dos deuses emerge jovem e pagã
Como a opulenta arquitectura de um jardim
      suspenso na manhã.


Homenagem a Mário Cesariny de Vasconcelos

Assim acontecem e se tecem os algarismos da morte.
A mais marginal e biográfica.
O que recua, em o mármore da memória, é a nobilíssima visão da madrugada omnipotente.
O bastante é belo, o cerne o crânio do efémero e antiquíssimo diurno

Lx. 12-2-77
Caderno: A composição do espaço
In “A IDEIA”, n.º 81/82/83; Évora, Out. 2017, p. 65


Herberto Helder

Exactamente, um estilo[3], como diz o Herberto em este[4] estio
e em “Os Passos em Volta” que, ambos, demos, cicatrizados de abandono.
Mas amigo Herberto tu és grande, um grave fenómeno em o universo da poesia.
Eu, menor poeta escrevo que escrevo que não devia escrever, porque fábula, banquete, Outono
da infância que em mim se perfez: nudez de menino a mexer nada e exílio,
menino que interpela um deus anónimo, a própria morte, menino e sua sabedoria.

Lx. 12–8–76
Caderno: “O Reino do Rigor” ou “Reino Efémero


Posse

Hoje deixa-me inventar
O silêncio dos teus silêncios
E o prazer que escorre dos teus dedos
E as madrugadas que concebeste
Hoje deixa-me inventar
O corpo de luar que me abriste
E a pergunta dos teus medos!
Hoje deixa-me inventar o Outono do teu sorriso triste!

Lx., 27/11/964


à Ana

lugar grave em que, táctil, te inscreves,
celebrando as sombras, que, efémeras e aéreas, teces.
que praia imperfeita rasa o pranto do olhar,
na ciência divina em que te esqueces.

Setúbal-15-6-75
Caderno: Da Periferia do Corpo


“Telegrama”
(Para a Ana)

Em a manhã molhada (esparsa e cinzenta chuva…),
Que escamas de cama ausente…
Por isso, envio-te, de amor, um telegrama:
“Amo-te em o impossível amor, Stop. És um espaço volátil,
Stop. Olha Ana ou Daisy. Embarco para os Brazis, Stop.”
E em o objecto inscrito de amar, que nobreza de amor habitável.
Não sou amante mas seu vulto. E descrevo a irreversível curva dos 35 anos ou enganos…

Manoel Tavares Rodrigues-Leal

Lx. ou Cintra 12-14/02/1977
Caderno: “A composição do espaço”
Escrito aos 35 anos …


para a Maria João

Eu sei que não vieste
Na tarde circular
Amanhã quando o mar
Sorrir deitado na areia
Direi que é uma rapariga alheia
Ao amor e à rosa que vou trincar.

Lisboa — 29/01/88


para a Myrian

“Il y a toujours un peu de folie
dans l’amour. Mais il y a toujours un peu de
raison dans la folie.” — Nietzsche [inscrição no manuscrito acompanhando o poema]

De Myrian soube o curso sóbrio das consoantes do desejo. As colinas
insones de um olhar obsessivamente azul. As sílabas de neve dos habitantes
do seu país natal. O som do corpo de Myriam repousava no sangue dos longínquos
poentes pungentes da Bélgica. O mar (o de Myrian) afagava o marfim
da sua grave brancura. Com Myrian não percorri os jardins antiquíssimos do desejo.
Aves aves do desejo divinizado que seus dedos desvendavam. As narinas embriagadas
pelas breves brisas do litoral. Ó espelhos do Sul nos quais se miravam os olhares de quartzo
de Myrian. Ó quente espectáculo das pétalas do espanto. Ó crepúsculo de loucas praias
do Sul. Outono da nossa nudez nupcial.

Lx.13–7–72


para a Isabel

o que é ideia nítida, rigorosa, suspensa?
idade implícita, o meu gesto jaz…
que doce canto, cálices prenhes de desejo…
meço metal, o mármore úbere de um beijo.
que desejo geométrico. que nua estátua, cúmplice espelho…
Isabel, umbigo de beleza, meu instante distante…

Lx. 5–6–76
Caderno: O Umbigo da Beleza


Um poema inédito (2ª versão), evocando o filme “Blow-Up” (1966), de Michelangelo Antonioni.

“Blow-Up”

São os jardins primordiais e deslumbrados
E seus mitos efémeros, e as longas áleas nimbadas de buxo.
E os abraços, beijos demorados e quentes e perturbados.
E à noite, ermo o jardim, como se tecem festas, como abuso
Do areal do luar que nos ensina, amantes, amados, seu brilho profuso.
Passeemos, sob a liberdade do luar, em as áleas passeemos,
E inventemos uma nova lua – loucura de quem ama o luar, de novo passeemos.
Que linda loucura, a traçámos, porventura delicados e castos.
E quando abdico de loucura, mergulho em ígneas bocas de tempo e sua usura, saturados.


Manoel Tavares Rodrigues-Leal
Lx. 31-8-76


PENÉLOPE

PENÉLOPE fia a auréola do tempo
Adivinha a riqueza da memória
Espera a vinda de ULISSES seu amante desejado
E sob a abóbada do céu abençoado
Tece-se a noite num manto desgrenhado
PENÉLOPE nunca se foi embora
Dádiva transparente e de glória
Curvou-se docemente nos ombros da vigília do vento.

Manoel Tavares Rodrigues-Leal
In Nova Águia, nº14, 2.º semestre, 2014, pp. 265.  


(Perfil de Sophia)

reerguer o equilíbrio grego da beleza: medida
do homem e do mundo, eis a alquimia a embriaguez
de Sophia, consumida através do templo antigo do poema.

Lx. 25-1-79
Caderno: Limae Labor
Revista Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, p. 225, Sintra, Zéfiro.


Sophia
Sophia de Mello Breyner Andresen
(após leitura de Dual)

imagem fugidia
que emerge da antiguidade do dia,
e morre, insone e perpendicular,
irmã da unidade e da medida do olhar.

Lx. 18-3-73
Caderno: Limae Labor


Manoel Tavares Rodrigues-Leal , (2014), 1º semestre, «(Fernando Pessoa)», Nova Águia, nº13, p. 160.  

(Fernando Pessoa)

Aqui a superfície do mar é profunda, profusa e lisa, (prateada de pranto):
Aqui irrompe a presença impessoal de Fernando Pessoa:

As escamas do mar jazem sob o brilho de luzes antiquíssimas. E o seu nome, suspenso e nomeado, ressoa.

Sesimbra, 30-6-73.
Caderno: Limae Labor (1973).

e assim nasceu. e falava. assiduamente.
era como o verão. que se abrira. recente.
como um clarão rubro de inocência. bebia
então taças tecidas de espanto. o
exílio.
iniciara-se. como uma teia. tecida lentamente. por
estranha e eterna aranha.
quando parido. por um período de vida.
fecundo. a mãe
linda. morrera ao pari-lo. que
eternidade vazia e vã. como a de
um deus. mítico ou não. que interessa isso.
para a posteridade.

Manoel Cardôzo
lxª18.07.2003
De A Duração da Eternidade
_________________

Filme documentário: "O retrato de Rimbaud oscila" ("Le portrait de Rimbaud oscille"). 

Um olhar sobre Jean-Arthur Rimbaud – por Manoel Tavares Rodrigues-Leal. 
Realização: Luís de Barreiros Tavares e Daniel Monteiro (Fevereiro - 2021). 
Este filme documentário foi realizado no âmbito da Edição “Rimbaud no poema – Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud” na Revista Triplov (Arte, Religiões e Ciências). 
Neste tributo publicaram-se “Vinte e dois poemas, quatro prosas poéticas e três cartas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud” (Junho – 2020). Agradecimentos a Maria Estela Guedes (Triplov). 
"O retrato de Rimbaud oscila" (título do filme e verso de um poema de Manoel T. R.-Leal.
https://youtu.be/186ll2laggk





Vinte e dois poemas, quatro prosas poéticas e três cartas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud https://triplov.com/revistaTriplov/vinte-e-dois-poemas/

_____________________________

Obs:
Pobre país este em que o apoio à produção das vacas leiteiras afectou uma verba quase gigantesca (7+4 milhões de Euros em 2016), comparada com o poucochinho – quase zero – destinado à produção literária (135.000,00 Euros para bolsas de criação literária em 2017).
Não ponho em causa as necessidades do corpo – o leite –, mas não desprezo uma das necessidades do espírito – a literatura ...

2016-10-17

Viriato


Viriato, Cava do Viriato, Viseu.




















Chefes Lusitanos
155 a.C.  -   PÚNICO
153 a.C.  -  CÉSARO
153 a.C.  -  CAUCENO
147 a.C.  -  VIRIATO
147 a.C.  -  TÁUTOLOS
 80 a.C.  -  SERTÓRIO  

                                   



Chefes Lusitanos
155 a.C.  -   PÚNICO
153 a.C.  -  CÉSARO
153 a.C.  -  CAUCENO
147 a.C.  -  TÁUTOLOS
 80 a.C.  -  SERTÓRIO  


Justificação

                                          

Entre mim e o mundo
pedra a pedra
ergui um muro
feito de indiferença.
Por não querer ser
uma bala
ou mortífero
projéctil
         de canhão.
Para não ser
mais um cadáver
insepulto
algures com lápide e sepulcro
ao «desconhecido»
de mais uma guerra infame …



J.T. - 12-FEV.-73

2012-07-02

A Catedral do Mar ... (Santa Maria Del Mar, Barcelona – A Catedral do Povo)

Um livro de excepção
a não perder …



     
      A Catedral do Mar (de Ildefonso Falcones, 2006) é um fabuloso romance histórico cuja leitura nos transporta, de uma maneira intensa, à Barcelona do século XIV pelo magnífico retrato que dá das vivências desta cidade nos fins da Idade Média, assim como da sociedade da Barcelona medieval no seu conjunto.

Barcelona, Santa Maria Del Mar.
     Na sua narração perpassa o burburinho das ruas, as cores pardas e os cheiros a suor do povo simples que transporta nos ombros as pedras para a edificação da uma das mais belas catedrais góticas da Catalunha: Santa Maria Del MarA Catedral do Povo. Foi edificada num período ininterrupto de 55 anos por Berenguer de Montagut, o maior arquitecto catalão daquela época.
   O esforço aqui descrito é uma epopeia de heroísmo e de sacrifício humano, o qual só foi possível pela perseverança da fé de todos os que, para a sua concretização, superaram dificuldades inacreditáveis.

     São várias estórias, dentro da História, passadas entre 1320 e 1384, onde a figura central Arnau Estanyol, filho de Bernat Estanyol e Francesca, gente de origem rural que se consegue libertar do jugo de um Senhor Feudal que exerce sobre Francesca o Direito da Primeira Noite (jus primae noctis). 
Barcelona, Santa Maria Del Mar.
      O nosso herói (Bernat) refugia-se em Barcelona, cidade onde a Lei lhe permitia a conquista da liberdade ao fim de uma ano de trabalho. Aí vai começar por exercer a profissão de oleiro, enquanto o filho (Arnau), de criança pobre e curiosa, vai-se transformar num homem de sucesso ligando a sua vida à construção da Igreja de Santa Maria del Mar inaugurada a 15-VIII-1383. 
    Ao longo de toda a narração percorrem-se vários caminhos que nos descrevem um mundo de opressão, medo, fome; assim como nos mostra o caminho da redenção individual, apesar de todas as contrariedades.

Um livro a não perder.

Boa leitura.

2011-11-26

Património edificado em Lisboa

Av. Estados Unidos da América, Lisboa.
Três imóveis e respectivas decorações murais surrealistas
com interesse patrimonial.


Av. Estados Unidos da América, Lisboa.

     Foi na Avenida dos Estados Unidos da América, em Lisboa, que surgiu pela primeira vez em Portugal um urbanismo que contrariava o tradicional conceito da rua-corredor, com a implantação de edifícios de dimensões inabituais e dispostos perpendicularmente ao eixo da via de rodagem, tipo de urbanização que logo foi reproduzida em parte da Av. Infante Santo.

  Grande número destes edifícios tem a assinatura dos arquitectos que se distinguiram no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura (1948), o qual representou uma viragem na reconquista da liberdade de expressão arquitectónica e da "construção multifamiliar em altura" e em grande escala, à revelia da corrente mais conservadora do Estado Novo que se vinha opondo a esta transformação.

  A oposição ao surgimento desta nova tipologia arquitectónica ficou a dever-se ao facto de se considerar que as tradicionais construções unifamiliares à "antiga portuguesa", inseridas dentro de uma “ideologia ruralista” e receosa da colectivização habitacional, tinham a vantagem de serem mais adequadas ao recato da vida familiar, contra as “desvantagens sanitárias e morais dos prédios”, como defendia o arquitecto Manuel Vicente Moreira em 1950, num estudo sobre a problemática habitacional.

  Esta Avenida foi um marco inovador que viria a alterar os conceitos urbanísticos que nas décadas seguintes influenciaram decisivamente o urbanismo na cidade de Lisboa.

  Como consequência do triunfo destas novas ideias, edificaram-se em ambos os lados desta avenida grandes prédios em banda, cada banda com três edifícios independentes mas justapostos.

Azulejos de padrão.
Azulejos de padrão.














   Três destes prédios são presumivelmente os mais antigos e estão situados no quarteirão que fica entre a Av. de Roma e a Av. Rio de Janeiro.
   Foram projectados para receberem luz solar e arejamento de todos os lados e para esse efeito foram separados por amplos espaços ajardinados, segundo um projecto do notável arquitecto paisagista David Ribeiro Teles (n. 1922), o qual só foi aplicado ao lado Norte deste novo eixo viário. O lado Sul do mesmo, edificado pouco mais de uma década depois, sucumbiu às pressões especulativas e trocou os ajardinados por baixas edificações destinadas a uso comercial e industrial o que acabou por desvirtuar o projecto inicial de Ribeiro Teles.
   Estes três edifícios que supomos serem os iniciais(?) foram edificados por volta do ano de 1959, e neles foi implantado um relevante conjunto de 6 painéis decorativos de mosaico em pastilhas de vidro que eram então fabricadas na «Covina – Companhia Vidreira Nacional», tendo ainda alguns revestimentos de azulejos de padrão com formas geometrizadas, os quais foram produzidos na «Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego», a qual ainda conserva as respectivas matrizes em serigrafia, assim como as referências das suas cores originais.

Mosaico
Mosaico












Mosaico
Mosaico










Mosaico
Mosaico












 Este conjunto de edificações encontra-se vandalizada pela praga das marquises que lamentavelmente vem assolando a cidade de Lisboa, assim como pelas diversas pequenas alterações nas fachadas, como a abertura de frestas e janelas onde nunca estiveram previstas, pelos aparelhos de ar condicionado dispostos arbitrariamente, assim como pela passagem de diversas canalizações pelo lado exterior a nível do rés-do-chão para evitar maiores despesas: tudo isto resultado da falta de sensibilidade, de cultura estética e de respeito pelas normas em vigor; o que, a continuar assim, irá transformar esta outrora nobre avenida numa espécie de periferia de uma qualquer capital de um país subdesenvolvido.

  Não faz muito tempo, numa reunião de condomínio em que se discutia a necessidade de obras de conservação num destes prédios, um bisonho co-proprietário que obstaculizava as necessárias obras de limpeza das fachadas argumentou que o prédio “era como as mulheres”, pois, tal como elas “não era por se pintarem que viriam a gozar de mais saúde”!… Com este tipo de atitudes cada vez mais frequentes, poderemos imaginar o que o destino reservará a este notável património arquitectónico!...

  Alguns azulejos deste conjunto de prédios já foram arrancados em obras recentes; outros foram substituídos por reboco ou por reproduções de má qualidade que não respeitam os tons originais, o que seria muito fácil caso recorressem à fábrica que os produziu.

Mosaico, assinado
«CC» - Carlos Calvet.
Assinatura de Carlos Calvet
numa pintura sua.








   Quanto aos 6 grandes painéis decorativos em mosaico (2 por cada conjunto de 3 prédios) que decoram estas fachadas nos topos Norte e Sul, a nível do piso térreo, junto às colunas que sustentam as edificações, são talvez a primeira manifestação da então “subversiva” modernidade a nível das artes plásticas urbanas.

  Segundo conseguimos investigar, deve-se a autoria destes 6 painéis a Carlos Calvet (1928-2014), que coloca a sua assinatura «CC» no painel que está junto à entrada do n.º 60 desta avenida, cuja temática revela um sentido visionário de cariz surrealista, por influência, segundo supomos, do seu cunhado o artista plástico António Areal (n. 1934), com o qual colaborava por esta altura.
  
  Estes painéis são uma afirmação da modernidade a nível das artes plásticas que, pela primeira vez (?), nesta proposta “salta” para a rua, a nível do espaço público lisboeta – e talvez de todo o país –, depois de alguns anos confinada apenas ao domínio quase privado de um ou outro salão oficial.


CARLOS CALVET DA COSTA (1928-2014)

 
Carlos Calvet (1928-2014)
Artista plástico português, Carlos Calvet nasceu em Lisboa em 1928 e aqui veio a falecer em 2014. Licenciou se em Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto. Dedicou-se desde muito cedo à pintura e nos anos 40 constituiu o grupo «Os Surrealistas» juntamente com Mário Cesariny, Pedro Oom, Henrique Risques Pereira, António Maria Lisboa, Mário Henriques Leiria, Fernando José Francisco, Fernando Alves dos Santos e Cruzeiro Seixas.


  Além da pintura e da arquitectura, Calvet interessou-se também pelo cinema, tendo realizado algumas curtas-metragens, uma das quais com a participação do poeta surrealista Mário Cesariny. Expôs pela primeira vez, em 1947 na 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas na Sociedade Nacional de Belas Artes, obras que começavam a revelar um sentido de modernidade marcado pelo cubismo estético de Braque e valorizando o estatismo dos objectos representados.
  Entre 1948 e 1950 faz a sua primeira viagem a Paris. A partir de então, consciente da sua vocação como pintor, Calvet passa a estar mais atento à construção, ao jogo de volumes e à ambiguidade entre o simbolismo e a imagem natural. Nestas ambiguidades revela se a tendência para tudo petrificar. Em algumas paisagens aparecem ondas do mar e nuvens representadas como se fossem sólidos geométricos. Depois de um período abstracto lírico (1963 1964), Calvet confronta as formas espontâneas com as geométricas (1964 1965).

Com a redefinição do espaço, voltou-lhe a necessidade de figuração de objectos inventados no próprio acto de execução. Primeiro, manchas informes que adquiriam presença insólita de objectos inidentificáveis; depois, passaram a ser objectos banais, parafusos, botões, caixas de fósforos, ladeados de decorativismos de gosto pop. O ano de 1966 marca o início da síntese "pop metafísica" que caracteriza toda a sua obra posterior. Realizou exposições nas mais diversas cidades internacionais como Tóquio, Paris, São Paulo, Chicago, Roma, Montreal, Frankfurt ou Madrid.
(Fonte: Carlos Calvet. In Infopédia Porto: Porto Editora, 2003-2011)


  Aqui deixamos esta chamada de atenção à Câmara Municipal de Lisboa para a necessidade da salvaguarda deste conjunto patrimonial (3 imóveis e respectivas decorações murais), pois consideramos ser um monumento inseparável da história do urbanismo e da arte da cidade.

  Para este efeito o Município deve tomar as medidas jurídicas e administrativas necessárias ao seu arrolamento e classificação como património municipal, como lhe compete, único meio de evitar a sua degradação pelo decurso do tempo e a incúria dos seus legítimos proprietários, assegurando a obrigatoriedade da sua sobrevivência e conservação, tendo por base a Lei n.º 13/85 de 6 de Julho, e a subsequente Lei n.º 107/2001 de 8 de Setembro, sobre o Património Cultural Português.

2011-09-01

NICOLAS FLAMEL (f. 1418) - Alquimista


O mais enigmático alquimista parisiense
do Séc. XIV

Nicolas Flamel (f. 1418)
Estampa feita a partir da existente nos
Archives Municipales de Pontoise, Séc. XVII

    NICOLAS FLAMEL (1330?, Pontoise - 1418, Paris), nasceu em Pontoise entre 1330 e 1340. Após a morte de seus pais foi viver para Paris e aí trabalhou como escrivão público, copista e livreiro da universidade, tendo acumulado uma grande fortuna devido ao êxito na gestão dos seus negócios, segundo alguns dos seus biógrafos; ou por ter descoberto a Pedra Filosofal que lhe permitia transmutar metais em ouro, segundo outros.
Edição moderna de
«Le Livre des figures
 hiéroglyphiques», 1612.

    Vários estudiosos e ocultistas posteriores atribuíram à sua autoria diversos tratados alqumicos muito antigos que terão ficado manuscritos até bastante tarde, o mais célebre dos quais foi «Le Livre des figures hiéroglyphiques» publicado em 1612, no qual o seu autor conta como se tornou muito feliz ao adquirir em 1357 um antiquíssimo manuscrito de Abraham “o Judeu”, o qual continha diversos textos e enigmáticos desenhos alegóricos que ele passou a decifrar e eram uma espécie de cabala e alquimia. Este livro relatava os processos da Grande Obra, sem contudo revelar qual era a matéria-prima.

Alquimista
  São-lhe ainda atribuídos «O Livro das Figuras Hieroglíficas» (1399), «O Sumário Filosófico» (1409), e o «Saltério Químico» (1414), entre outros. Alguns destes manuscritos estão conservados na Bibliotèque National (referências: fr. 19075, e fr. 14765), e na Bibliothèque de l’Arsenal (referências: n.º 2518, e n.º 3047).

   Por volta de 1364 casou com uma abastada viúva de nome DAME PERNELLE (?-1397), falecida em 1397. Este matrimónio deu-lhe a possibilidade de se dedicar à alquimia a partir de 1380, conseguindo a fazer a transmutação alquímica alguns anos depois, segundo os seus biógrafos.

Saint-Jacques-de--la-
-Boucherie (demolida)
  Flamel viria a falecer a 22-III-1418, após ter feito um testamento com numerosas doações pias e foi sepultado Igreja de Saint-Jacques-de-la-Boucherie, sob uma pedra tumular contendo enigmáticas gravuras e uma inscrição que ele próprio mandou fazer, a qual estava colocada junto a um pilar com uma imagem da Virgem. Esta igreja foi destruída após a revolução, por volta de 1797, tendo apenas sobrado a torre sineira. A pedra tumular foi parar às mãos de um vendedor de frutas e legumes que a utilizava como balcão de mercado para expor os seus produtos, local de onde foi resgatada por um antiquário parisiense em 1839 para ser depositada no Musée de Cluny onde se encontra actualmente exposta.
  
Torre de Saint-Jacques (1865)
    Após a sua morte, com mais de 80 anos, a sua casa foi saqueada por gente ávida por encontrar a pedra filosofal ou pelo método da sua obtenção. Segundo a lenda, Flamel e Perrenelle não morreram e nas suas tumbas foram encontradas apenas as suas roupas em lugar de seus corpos. Eles teriam vivido graças ao elixir da longa vida que Flamel também teria fabricado.

   Os avultados bens deste casal eram constituídos por muitos terrenos e prédios urbanos de rendimento, nos quais foram investindo o seu dinheiro, do qual também gastaram avultadas somas na construção e reparação de hospitais, igrejas, casas para indigentes, e cemitérios, assim como no embelezamento de diversos monumentos religiosos.

     Durante a sua vida já se sabia que a sua fortuna era considerável, mas, aquando da sua morte, o espanto foi geral ao saber-se pelo testamento a sua verdadeira grandeza.

Portal de Saint-Jacques-de-la-Boucherie
(gravura)
    Nicolas Flamel revestiu de hieróglifos as diversas edificações que levantou em vários locais de Paris.
   O Abbe Vilain, sacerdote de Saint-Jacques-de-la-Boucherie (1758), informa-nos que o pequeno portal desta igreja foi mandado executar em 1389 por Flamel que o cobriu de enigmáticas figuras.. «No umbral ocidental do portal, vê-se um pequeno anjo esculpido que tem nas mãos um círculo de pedra, no qual Flamel mandou encravar um disco de mármore negro com um filete de ouro fino em forma de cruz …» (Histoire critique de Nicolas Flanel. Paris, Desprez, 1761)O doador Flamel e sua mulher estão representados ajoelhados.

    Os pobres de Paris ficaram a dever à sua generosidade duas casas que edificou na Rue du Cimitiére de Saint Nicolas-de-Champs: a primeira em 1407, a outra em 1410. Estes imóveis apresentavam, segundo relatos posteriores, «grande quantidade de figuras gravadas nas pedras, com um «N» e um «F» góticos de cada lado».
    A capela do Hospital Saint-Gervais, reconstruída a expensas suas, nada tinha que invejar às outras construções. «A fachada e o portal da nova capela, escreve Albert Poisson , eram cobertas de figuras e de legendas à maneira usual de Flanel». 

  O portal de Sainte-Geneviève-des-Ardents, situada na Rue de la Tixerandrie, conservou o seu interessante simbolismo até meados do século XVIII, época em que foi transformada em casa e os ornamentos destruídos.

Cimitiére des Saint-Innocents
(desaparecido)
  Flamel levantou ainda duas arcadas decorativas com figuras hieroglíficas no Cimitiére des Saint-Innocents: a primeira em 1389; e a segunda em 1407. Poisson diz-nos que na primeira delas se via entre outras placas hieroglíficas, um escudo que o Adepto «parece ter imitado de outro atribuído a S. Tomás de Aquino». O célebre ocultista acrescenta que ele figura no final da «Armonie Chymique» de Lagneau. Eis, aliás, a descrição que dele nos oferece: «O escudo está dividido em quatro por uma cruz; esta tem no meio uma coroa de espinhos em quatro por uma cruz; esta tem ao meio uma coroa de espinhos encerrando, no centro, um coração sangrando de onde se eleva uma cana. Num dos quadrantes vê-se IEVE em caracteres hebraicos, no meio de uma profusão de raios luminosos, por baixo de uma nuvem negra; no segundo quadrante, uma coroa; no terceiro, a terra está coberta por uma ampla seara, e o quarto é ocupado por globos de fogo».
Arca decorativa mandada fazer por
Flamel no Cemitério dos Inocentes
com a representação dos doadores
(gravura)
     Esta relação, de acordo com a gravura de Lagneau, permite-nos concluir que este fez copiar a sua imagem da arcada do Charnier. Não há nisso nada de impossível, visto que, de quatro placas, restavam três no tempo de Gohorry (1572?) e a «Harmonie Chymique» foi publicada em 1601 por Claude Morel

Arcadas do Cemitério
dos Inocentes.
    Este interesse por edificar portais de igrejas deve-se ao facto de aí poder gravar na pedra o seu retrato como doador, assim como, através dos hieróglifos que neles mandou inscrever, transmitir alguns conhecimentos (segredos) alquímicos à posteridade.

   Segundo alguns autores, a sua fortuna ficou a dever-se ao seu interesse pela aquisição imobiliária em mau estado de conservação, a qual posteriormente valorizava com obras de beneficiação e alugava. Segundo outros, o seu enriquecimento deve-se à Alquimia que praticou e "publicitou” em subtis hieróglifos com os quais foi decorando as paredes das sua propriedades hoje desaparecidas, à excepção da sua última casa que ainda subsiste no 51 da rue de Montmorency, a qual é uma das mais antigas edificações de Paris.


A Casa de NICOLAS FLAMEL
 (Rue de Montemorency, Paris)
Laboratório alquímico com o respectivo
Athanor.
  No n. º 51 da Rue Montmorency, perto da esquina da Saint-Martin-Larue, onde Flamel possuía diversas casas, situa-se uma das mais antigas habitações de Paris que é conhecida como a "Casa de Nicolas Flamel" (1407). Constituída pelo piso térreo com uma fachada que ostenta três portas e duas janelas, assim como mais quatro pisos, cada um deles com duas janelas rectangulares. Sob a casa há adegas abobadadas (o presumível laboratório alquímico com o respectivo Athanor?), e nas traseiras um quintal.

Paris, Casa de Nicolas Flamel.




Paris, Casa de Nicolas Flamel (piso térreo).



  Actualmente só conserva a fachada do piso térreo num estado próximo do original. Os dois últimos pisos superiores foram muito alterados face a uma gravura antiga na qual se vêm duas altas chaminés laterais, tendo as escadas interiores sido mudadas de posição. Está decorada, na fachada do andar térreo, com uma série de gravuras e inscrições que um criterioso restauro trouxe à luz do dia. Sabemos, segundo relatos existentes, que desapareceu um painel de pedra esculpida no primeiro piso, o qual foi substituído em 1900 por uma inscrição destinada a recordar o fundador Nicolas Flanel. O piso térreo, muito modificado no seu interior, actualmente abriga um pequeno restaurante.

Casa de N. Flamel, Placa de 1900.
Paris, Casa de N. Flamel (piso térreo).





   Estas inscrições e hieróglifos, raros de encontrar em casas da Idade Média, despertam para a sua decifração o interesse dos ocultistas e alquimistas posteriores, os quais as interpretaram como subtis alusões à Grande Obra Alquímica de que Flamel e sua mulher Perenelle seriam Adeptos.

  Por disposição testamentária, após a sua morte em 1418, esta casa foi legada à paróquia de Saint-Jacques com o objectivo de ser transformada em asilo para os pobres, finalidade esta que nunca foi cumprida.


Casa de N. Flamel (Séc. XVIII)

Casa de N. Flamel,  figuras hieroglíficas.





Casa de N. Flamel, figuras hieroglíficas.













Casa de N. Flamel,
figuras hieroglíficas
.
(com um «P» de Pernelle)
Casa de N. Flamel,
figuras hieroglíficas
.
(com um «N» de Nicolas)












Casa de N. Flamel,
figuras hieroglíficas.
Casa de N. Flamel,figuras hieroglíficas.







A Tumba de NICOLAS FLAMEL
Pedra sepulcral de N. Flanel,
actualmente no Musée de Cluny.
  A enigmática pedra sepulcral, feita por ordem do seu destinatário ainda em vida, tinha por objectivo perpetuar a sua memória. Porém o destino traíu-o, pois, a Igreja de Saint-Jacques-de-la-Boucherie onde se encontrava e da qual Flamel foi o maior doador, tanto em vida como por disposições testamentárias, acabou por ficar em mau estado de conservação e foi destruída após a revolução francesa. A pedra tumular andou muito tempo perdida, até que em 1839 foi resgatada para o Musée de Cluny, onde se encontra.

  Esta pedra tem na parte superior uma janela onde se vê um enigmático conjunto de três personagens em busto, cada uma coroada por uma auréola e, entre elas figura o Sol Radiante e a Lua. Uma dos objectivos da alquimia é o chamado casamento alquímico entre Sol (ouro) e Lua (prata), símbolos da eterna dualidade que possibilita a criação e a vida.
A figura central ostenta na sua mão esquerda um globo crucífero que, aparentemente, tem um duplo significado: símbolo do mundo, numa leitura simplificada, ou a nível espagírico e esotérico simboliza o antimónio (alquímico), correspondente à penúltima etapa em busca da pedra filosofal (ouro alquímico).
Pedra sepulcral de N. Flanel.
(inscrição)

  À direita da figura central, um homem transporta uma chave, o que pode simbolizar São Pedro, ou a outro nível simbólico mais oculto símboliza a fidelidade e a discrição do Adepto da arte alquímica, abrindo caminho para o conhecimento.
  À sua esquerda outro homem tem na mão uma espada e representa Saint Jacques o patrono da igreja onde foi enterrado Flanele, santo este que era considerado o sucessor cristão de Hermes Trismegistus (três vezes grande) para os alquimistas medievais.

  O Saint Jacques da devoção de Flamel nada mais era do que São Tiago Maior sepultado em Santiago de Compostela (Campus Stella - Lucal de Luzes), pelo qual os alquimistas e místicos medievais tinham grande devoção. Estes demandavam o túmulo do apóstolo fazendo inúmeras paragens durante o trajecto, procurando a sabedoria guardada nos mosteiros que eram fonte inestimável de acesso e troca de conhecimento, por via do misticismo judaico e árabe que sobrevivia na Espanha daquela época.

 É este o simbolismo oculto que escapa das inúmeras gravações alegóricas feitas ás ordens de Flanelle, quer nas obras em pedra que mandou executar, quer nas gravuras manuscritas que ele próprio fez ou copiou de outros textos mais antigos, que segundo os adeptos da alquimia nos permitem penetrar nos mistério da Grande Obra.

  Este tipo de mensagens ocultas também ficaram perpetuadas nos inúmeros baixos-relevos que decoram a Catedral-de-Notre-Dame-de-Paris, os quais não cabe aqui explanar. Este modo velado de transmitir conhecimentos tem por fim a sua divulgação apenas aos adeptos interessados (só eles podem levantar este véu), ocultando do público em geral um segredo que, se divulgado abertamente, iria perturbar a harmonia de qualquer sociedade...

  Aqui deixamos esta história medieval para avaliação do leitor amigo, sem querermos fazer julgamentos, pois, da história e da riqueza dos povos também fazem parte estes mitos…


A ALQUIMIA
A Alquimia,  baixo-relevo do grande pórtico
 de Notre Dame de Paris.
  O alquimista não procura novos fenómenos, ao contrário da ciência moderna, mas antes tenta reencontrar um antigo segredo que é inacessível para a maioria.
    Ela não procura apenas a transmutação de qualquer metal em ouro, mas acima de tudo uma maneira diferente de ver o mundo. Não separa o material do espiritual, pois na realidade tudo é uma coisa só, uma unidade, o ser humano. A transmutação da matéria e do espírito, na alquimia, ocorrem ao mesmo tempo.
   A figura sentada numa cadeira, tem numa das mãos os livros da sabedoria, na outra o ceptro e apoiada no seu peito a escada que, tal como a escada de Jacob, permitirá chegar à esfera do conhecimento divino.