2023-06-01

O Pintor ARNALDO BENAVENTE FERREIRA (1923-2000)

 
Arnaldo Benavente Ferreira (1923-2000)

ARNALDO BENAVENTE FERREIRA (1923-2000) foi um dos grandes pintores da temática lisboeta, com o qual me cruzei muitas vezes na segunda metade da década de 70, e passo aqui a evocar.

Estes fugazes encontros, ocorreram muitas vezes ao cair da tarde quando eu descia o Chiado em direcção à estação do metro do Rossio, depois de terminar as aulas na Escola Superior de Belas Artes que então frequentava.

Artista incompreendido, tinha uma compleição seca e elegante que destoava dos repetidos insultos que vociferava de "São todos uns patifes! Calões! Canalhas! Biltres! ", quando caminhava pela rua ou entrava nos cafés e livrarias do Chiado – dirigidos não se sabe a quem!... 

Embora se avente que estes impropérios, que assustavam quem não o conhecia, eram endereçados a quem “dava menos valor à cultura do que a tudo o resto”, eu, na minha fantasia, talvez fruto da recente mudança de regime, imaginava-os dirigidos aos fautores da Nova República que então despontava, ainda sem tantos “calões” e “patifes” como o futuro demonstrou, e ele terá vislumbrado… Esta mudança de regime, ter-lhe-á frustrado encomendas entre os apoiantes do anterior sistema, devido à falta de meios e à sua queda em desgraça. Daí a sua revolta e o seu visceral desagrado, segundo eu presumia…

Por esta altura, era vê-lo desfilar Chiado acima, num passo miudinho e apressado, com os seus sapatos de verniz reluzentes, o cabelo repuxado para trás com brilhantina que lhe emoldurava um semblante grave e pálido, numa elegância “retro” com o seu fato preto ou cinzento escuro, colarinho de goma de uma alvura inexcedível, preferencialmente de gravata branca, lenço branco e um obrigatório grande cravo da mesma cor na lapela.

Foi este seu ar peculiar, por vezes com um bouquet de cravos brancos na mão, que o levou a ser alcunhado de “o sempre noivo”, “o noivo eterno” ou o “pintor da noite”.

A sua figura singular, melancólica como ele próprio se definia, avesso a todo o convívio, quase sempre com um chapéu de feltro na mão e muitas vezes com um quadro ou uma pasta com esquissos debaixo do braço, não deixava ninguém indiferente. Os surtos de agressividade verbal sem destinatário conhecido, assim como o seu isolamento social, aliado à temática sombria da sua obra sobre Lisboa nocturna sempre vazia da presença humana, parecem indiciar uma provável perturbação da personalidade que, ainda que ligeira, se foi agravando com o avançar da idade.

Arnaldo Benavente Ferreira
(1923-2000)
A imaginação popular, devido ao seu estilo formal de se paramentar, romantizou-lhe a existência, atribuindo-lhe um hipotético abandono pela noiva no dia da boda, ou a sua morte inesperada antes do casamento, o que o teria levado a esta hipotética loucura… Numa das raras entrevistas que deu â RTP (25-08-1973, “Um dia com… Arnaldo Ferreira”), desmentiu esta legendária narrativa, acrescentando que este seu modo de se apresentar, apenas tinha a pretensão de “trajar com decência”.

Nasceu numa família de parcos recursos, no típico bairro da Graça, a mais alta colina de Lisboa; um bairro com alma e belíssimos miradouros que terão contribuído para lhe aguçar a sensibilidade. Ao certo, sabemos ter residido na Rua da Verónica à Graça, e dizia-se que, mais tarde, veio habitar perto Elevador da Bica/Calçada do Combro, o que justificaria a sua frequente presença no Chiado, facto este que carece de confirmação como muitas outras lendas que sobre ele efabularam. No Chiado frequentava amiúde a Livraria Bertrand e a Pastelaria Bénard, então dois dos ícones da elite intelectual e da burguesia lisboeta.

Estudou na Escola Artística António Arroio e na Escola Industrial Afonso Domingos, esta última uma referência do ensino técnico profissional que privilegiava o ensino do desenho elementar de arquitectura e de máquinas, tal como o de pintura decorativa, e era conhecida pela “Universidade de Xabregas”, tal a qualidade do seu ensino na primeira metade de Novecentos. Nestes dois estabelecimentos de educação, não concluiu os estudos, pois começou a trabalhar cedo em empregos mal remunerados que lhe cerceavam a ambição de ser pintor.

Trabalhou como desenhador de joalharia, até que, a seu pedido foi orientado pela artista plástica MARIA ADELAIDE LIMA CRUZ (1908-1985) e abraçou definitivamente a sua vocação de artista. Esta sua mentora e vizinha, pela qual Arnaldo Ferreira demonstrava uma dívida de gratidão, residia na Rua da Graça do mesmo bairro, e descendia de uma família ligada às artes plásticas e á música. Foi discípula do notável pintor Carlos Reis (1863-1940), além de bolseira em Paris durante um ano (1934), tendo dispersado a sua criatividade artística como pintora, cenógrafa, figurinista e cartoonista, assim como professora de alguns aspirantes a artista.

ARNALDO FERREIRA, segundo consta, embora gostando da noite como tema da sua singular obra pictórica, raramente deambulava pela vida nocturna da capital, só o fazendo para vender alguns dos seus quadros, pois achava que os boémios lisboetas que nela vagueavam saberiam apreciar a sua obra. Dele se dizia que, recolhido a casa, pintava freneticamente pela noite fora até altas horas, e sobrevivia deste seu labor, ao qual juntava algumas exposições individuais e colectivas.

Marginalizado pelos académicos bem-pensantes, quiça devido á sua falta de sociabilidade e de escola, e ao facto de não fazer parte do grupo de pintores do modernismo português, não lhe era dado o valor que merecia. 

Solitário, mas com muita determinação, com o seu pincel captava com alguma maestria os claros-escuros nocturnos, numa visão onde as sombras pontuadas pela luz que fluía das janelas e dos candeeiros transmitiam a realidade sorumbática que distinguia os bairros típicos de Alfama, Mouraria, Bairro Alto e das diversas zonas ribeirinhas.

ARNALDO FERREIRA pintou mais de mil pequenos quadros, a óleo ou a pastel, que estão espalhados por todo o país e estrangeiro em colecções particulares e públicas, entre elas a Câmara Municipal de Lisboa e o Museu da Cidade.

Morreu a 15-XI-2000 tendo recebido algumas homenagens póstumas, tais como a atribuição do seu nome a uma rua do Lumiar, em Lisboa (15-XII-2003), assim como a um largo na vila ribatejana de Benavente. A Câmara Municipal de Lisboa, atribuiu-lhe ainda a Medalha de Mérito Municipal, Grau Ouro (21-IX-2005), pela dedicação de toda uma vida artística à cidade de Lisboa.

Nós, estudantes de Bela Artes, ao vê-lo passar na Rua Garrett sentíamos uma espécie de admiração secreta por este “outsider” do meio artístico; tanto pela incompreensão a que era votado pela sociedade, como pelo desprezo hostil com que este retribuía. 

O seu grande foco era a realização da sua obra plástica sobre a cidade amada perdidamente. Nada mais lhe interessava e, por isso, parece-nos que, à sua maneira, passou por este mundo oscilando entre a loucura dramática de um Van Gogh e a excentricidade feérica de um Salvador Dali.   

Por tudo isso, e para que não caia no esquecimento, aqui lhe prestamos o nosso tributo e respeito.


João Trigueiros









Eng. VALDEMAR CALDEIRA (1941-2019)

Eng. Valdemar Caldeira (1941-2019)

Este herói anónimo, já falecido (Abril-2019), por opção sua dispensou as futilidades e os fogos-fátuos de uma vulgar existência, dando-nos uma lição de grandeza e de carácter.

O seu exemplo foi um safanão que nos torna a todos mais pequenos perante a sua lição de vida.

O engenheiro químico Valdemar Caldeira, antigo e efémero professor da Universidade de Coimbra, cidade onde residiu e onde era admirado com respeito por quem o conhecia, senhor de uma invulgar sabedoria e sensibilidade, era natural do concelho de Montemor-o-Velho. Rejeitando as vaidades deste mundo, dedicou a sua fortuna aos pobres dando quase tudo o que tinha aos mais carenciados, vivendo humildemente como um eremita dos tempos modernos. Marginalizou-se e viveu com condições mínimas de sobrevivência e já com assomos de demência que lhe abreviou a existência.

Filho de uma família abastada com origem na Carapinheira, rejeitou a reforma do Estado e dava explicações gratuitas de Matemática aos alunos.

Solidário, modesto sem falsidade, a ostentação e a vaidade não faziam parte do seu universo cristalino que estava mais próximo da simplicidade do “Poverello de Assis”.

Felizmente que, num universo com muita gente supérflua, ainda encontramos seres assim. A sua grandeza, mesmo tocada pela loucura, serviu de exemplo à salvação de uma humanidade perdida que apenas valoriza as aparências sem conteúdo, a imposturice sem lastro e o efémero…

Pago aqui o meu tributo à nobreza deste ser inigualável que se foi libertando de tudo o que o prendia a este mundo que rejeitava e, tal como o Ícaro da mitologia grega, na sua ânsia de voar, acabou por soçobrar – talvez no Paraíso, pois era um crente fervoroso…

Tudo o que é grande foge da praça pública e da fama”, como ensinou Frederico Nietzsche.

 

João Trigueiros

_____

Testemunho:

«Há vidas assim...

Prescindiu da fortuna que os pais lhe deixaram para ajudar os outros.

Um sem-abrigo que ensina alunos da Faculdade a custo zero.

Uma celebridade que merecia honras de Estado.

Cansado de lidar com gente que se faz passar por aquilo que não é, depois de ver as igrejas cheias de pecadores e os cemitérios com tanta gente nobre, partilho este exemplo de mais um dos meus heróis anónimos.

Este Senhor que para muitos é um sem-abrigo, é um homem nobre. Professor Universitário aposentado, licenciado em Engenharia com distinção, co-autor de livros de matemática e engenharia, prescinde da sua confortável reforma para ajudar os que precisam mais do que ele. Não tocou na fortuna que herdou dos pais e não usa o carro topo de gama que o pai lhe ofereceu.

Na sua humilde casa ou em locais públicos, ensina os jovens universitários e outros estudantes que o procuram sem nunca cobrar um cêntimo.

Vive com o indispensável para sobreviver e recusa ajudas porque é um "homem rico" e tem a vida que escolheu.

O engenheiro Valdemar Caldeira não vai gostar, não lhe digam nada... O Engenheiro Caldeira não tem Facebook, nem computador, nem telemóvel.

Mas tem tempo, esperança e solidariedade para dar a quem precisa.

Que lição de vida!»

(Créditos: Joaquim Alhinho)