(In memoriam)
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016) |
Soube agora, com muito pesar meu, que o poeta MANOEL LEAL já partiu deste mundo.
Era uma amizade antiga – anterior ao 25 de Abril (1974) – que terá começado por volta dos meus 20 anos.
Mais tarde, a vida levou-nos por caminhos diferentes e perdi-lhe o rasto, já faz
muito tempo.
Deste infausto acontecimento,
tomei conhecimento através de um texto da autoria de LUÍS DE BARREIROS TAVARES,
filósofo, escritor, crítico e grande conhecedor de parte da vastíssima obra
inédita de M. Leal[1].
Seu grande amigo e admirador, colaborador da publicação digital «Revista Caliban»[2],
dedicou-lhe aí vários
textos de divulgação, dos quais colhemos algumas informações e fotos.
A notícia da sua morte
trouxe-me recordações dos nossos longínquos tempos de convívio, num grupo de
amigos que deambulava então nos cafés de Alvalade, os quais aqui não posso
deixar de lembrar.
Sei que o M. Leal deixou
cerca de 100 cadernos inéditos, de prosa-poética, alguns deles com cerca
de 100 poemas.
São milhares de pequenos textos,
agrupados por temas, dos quais o M. Leal ainda me mostrou alguns numa das
visitas que fiz a sua casa de Lisboa onde morava com a sua mãe, no Bairro das
Colónias, aos Anjos.
Manoel Leal (1941-2016) |
Esta sua casa ostentava uma decoração
antiga e intimista onde predominavam as cores das madeiras escuras dos móveis, assim como os tons ocres das paredes, numa profusão de livros e papéis, iluminada por uma
luz quase sempre velada: espécie de laboratório onde abrigava a sua timidez de
poeta incompreendido e dava azo ao seu génio criativo, pela noite dentro.
Da sua imensa obra, publicou
ao todo uma mão cheia de poemas em algumas revistas literárias de circulação
restrita e, já quase no fim da vida, alguns livros, em edição de autor.
Este infindável espólio,
quase todo inédito, deve ser estudado antes que se perca: coisa que ele não pode
fazer por falta de editor e de recursos.
O Manoel detestava
visceralmente a política e sempre recusou fazer parte de capelinhas partidárias
que o promovessem, ao contrário de muitos autores que pontificam neste país …
Quem sabe se, os milhares de
textos que ele nos deixou dispersos por numerosos cadernos – há semelhança de
outros casos do passado – só serão valorizados muitos anos depois da sua morte...
Nestes registos, ia anotando
os seus textos poéticos, bem alinhados, numa caligrafia miudinha de maiúsculas,
cheia de rasuras e emendas. Para ele, a maioria dos poemas nunca estavam
definitivamente acabados. Por vezes, para além das rasuras que lhes ia fazendo
ao longo do tempo, elaborava segundas versões.
Usou vários pseudónimos
literários, retirados dos nomes dos seus antepassados, facto este que passou
desapercebido à maioria dos seus críticos, os quais desconheciam a sua
genealogia.
Manoel Leal (1941-2016) |
Assim temos os pseudónimos MANOEL DA CUNHA E MELO (de uma avó de Viseu), na «Voz Equívoca»
(1975); MANOEL FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO PEREIRA DE GOUVEIA (de um
aristocrático 5.º ou 6.º avô natural de Ferreira de Aves), na «A Duração da Eternidade» (2007), na «A
Imperfeição da Felicidade» (2079, e na «A
Noção da Inocência» (2008); e ainda MANUEL DE SOUZA-VALENTE (de uma trisavó
de Ferreira de Aves), na «Lírica Translúcida» (2010).
Há ainda nos seus manuscritos
um outro pseudónimo: MANOEL PEREIRA DE GOUVÊA (tirado dos apelidos do já citado
5.º ou 6.º avô).
O seu interesse pela poesia
era obsessivo, quase doentio; uma permanente batalha sofrida com a palavra, muitas vezes travada à mesa do
café. Para a então irreverente juventude de muitos dos seus amigos e colegas de
Direito, que estavam interessados em coisas mais efémeras e mundanas, as actividades e conversa literária do M.
Leal, eram tediosas ... Porém, tinha um pequeno núcleo de pessoas que o
estimavam.
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016) |
Eramos então quase todos
estudantes pré-universitários ou universitários em início de curso, fúteis,
despreocupados e hedonistas, que esbanjávamos a vida nas tertúlias de café,
bares e discotecas de Lisboa; nomeadamente na zona do Areeiro e da Avenida de
Roma, que após o 25 de Abril se tornaria num dos centros da movida lisboeta.
Foi por aí que conheci o M.
Leal, quando este era aluno da Faculdade de Direito, curso que frequentou até
ao 5.º ano, mas não concluiu.
Detestava os grandes espaços
de convívio então aí existentes, apesar de os frequentar episodicamente – Café Roma e Capri na Av. De Roma; Café
Londres, Las Vegas, e Pastelaria Mexicana na Pç. de Londres –,
preferindo os locais mais pequenos e reservados para conversar com os amigos,
muitas vezes em sussurro e com a voz tremelicada.
Na altura em que o conheci,
nos finais da década de 60, além do meu interesse pela Artes Plásticas, eu era
um discreto apreciador da poesia, pois ia rabiscando uns versos, pelo que o M. Leal
exercia algum fascínio sobre mim.
Basicamente ele era muito educado,
discreto, solitário e introvertido, cuja obsessão pela criação poética acabava
por dificultar um pouco o seu relacionamento social com as pessoas comuns. Porém,
pairava sobre alguns de nós, como uma espécie de ser superior, um pouco
invulgar.
Recusava as futilidades
mundanas da vida. O seu grande, avassalador, e viceral objectivo, era a poesia.
Era um apreciador dos poetas metafísicos e malditos, tendo deixado registado num
seu caderno: "Não fiquei nem em Rimbaud nem em Pessoa. Não
sei se a minha poesia traz algo. Mas escrevo o que quero."
Imagino o quanto sofreu,
pelo seu génio poético não lhe ter sido reconhecido em vida …
♦
Falava muito pouco da sua família, mas sabemos que tinha irmãos, sendo ele o mais novo.
Sabemos, ainda, que era
primo do Dr. Francisco Sousa Tavares (1920-1993), advogado e político, casado
com Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), escritora e poetisa, que o M.
Leal muito admirava, com a qual chegou a conviver na sua casa de férias em
Lagos, e à qual um dia não se coibiu de dizer: “Não gosto dos seus poemas políticos". Era a sua aversão à
política…
Quando viu a luz do dia já o
seu pai contava 48 anos, tendo ficado órfão deste quando contava cerca de 14
anos, pelo que a vida não lhe terá sido fácil.
Era filho de MANUEL
RODRIGUES LEAL (1898-1955), jornalista, natural de Vila Verde, concelho de
Alijó, que ficou conhecido pelo pseudónimo «MANOEL VILAVERDE» devido à sua
origem geográfica. Presumimos ser ele o autor de um soneto de cariz religioso
intitulado “A morte de Soror Thereza do
Menino Jesus», o qual foi publicado na revista «Contemporânea» (n.º 3,
julho/Outubro 1926, p. 119).
Da figura paterna, costumava
dizer, com algum carinho, que foi um “jornalista
que passou por grandes dificuldades”; como muitos outros da sua época,
acrescentamos nós. Porém, segundo
conseguimos apurar, este viveu num ambiente muito rico de vivências culturais,
convivendo nas tertúlias dos cafés do Rossio em Lisboa, e aí estabelecendo
laços de amizade com muitos intelectuais da sua época. Alguns deles: António
Botto (1897-1959), poeta; Augusto de Santa-Rita (1888-1956), escritor e poeta,
irmão de Santa-Rita Pintor; António Ferro (1895-1956), jornalista e responsável pela política cultural do Estado Novo; Fernanda
de Castro (1900-1994), escritora e poetisa, casada com António Ferro; Pedro Teotónio Pereira (1902-1972), destacado
político e diplomata, foi um dos grandes obreiros do Estado Novo, sobre o qual
deixou alguns escritos; Almada Negreiros (1893-1970), pintor, poeta, ensaísta,
que entrevistou; e António Sardinha (1887-1925), poeta, historiador, político,
e um dos ícones do integralismo lusitano.
Manuel Leal, e sua mãe. D. Maria da Conceição, no Rossio, em Lisboa. |
A sua mãe, D. MARIA DA
CONCEIÇÃO DE MELO TAVARES (1904-1994), a «Tanina» para os íntimos, era uma
simpática anciã que ainda conheci na sua casa dos Anjos onde vivia com o M. Leal.
Por vezes ele referia a proveniência desta senhora, com origem numa “família aristocrática do Centro do país”
(Viseu). Certamente referia-se aos seus antepassados CUNHA e MELO de Viseu, aos
COELHO de MELO de Souto de Lafões, e aos FERREIRA DA MOTA CARDOSO de Ferreira de
Aves (dos quais tirou os seus pseudónimos literários); uma família abastada e letrada,
com vários licenciados em Direito na Universidade de Coimbra – que ele terá conhecido
por vagos relatos familiares, e nós conseguimos agora explicitar através da
genealogia.
Esta senhora fazia parte de
uma prole de sete filhos das segundas núpcias de HENRIQUE DE ARAÚJO GODINHO TAVARES
(n. 1855), proprietário e industrial, então viúvo, natural de Vigia, Pará,
Brasil, casado nas suas segundas núpcias a 17-IV-1893 na Igreja de Nossa
Senhora da Ajuda, em Lisboa, com D. MARIA DO NASCIMENTO DA CUNHA E MELO (n.
1866), natural de Viseu, da qual retirou um dos seus pseudónimos, filha do Dr.
AGOSTINHO DE SOUSA VALENTE FERREIRA DA MOTA (c. 1863), proprietário, formado em
Direito na Universidade de Coimbra (27-V-1863), natural de Aldeia Nova,
freguesia de Ferreira de Aves, concelho de Sátão, no distrito de Viseu, e de
sua mulher D. MARIA DA PIEDADE DE MELO E CÁCERES, natural de Souto de Lafões,
concelho de Oliveira de Frades.
As anteriores primeiras núpcias de HENRIQUE DE ARAÚJO
GODINHO TAVARES (n. 1855), foram celebradas a 29-X-1877 em São Sebastião da
Pedreira em Lisboa com D. MARIA DA PURIFICAÇÃO CARDOSO DE SOUSA (n. 1864),
natural de Alcântara, Lisboa, falecida em Belas, da qual teve 3 filhos, entre
os quais estava o pai de FRANCISCO DE SOUSA TAVARES (1920-1993), casado com a
emérita poetiza SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN (1919-2004), da qual o M.
Leal era admirador.
Seu trisavô, filho de um
homónimo Dr. Agostinho, era JOÃO DA CUNHA FERREIRA DA MOTA E ALMEIDA (n. 1836),
nascido a 12-XII-1836 na Quinta de Fontão, Lamego, casado em segundas núpcias
com D. MARIA JÚLIA DE SOUSA VALENTE, natural da Quinta da Chapeleira, Ferreira
de Aves.
Uma das origens deste ramo familiar, estará numa das três filhas de ANDRÉ FERREIRA DA CUNHA E ALMEIDA DA MOTTA CARDOSO PEREIRA DE GOUVEIA (1798-1869), moço fidalgo da Casa Real (9-X-1821), formado em Direito pela Universidade de Coimbra (10-VII-1820), coronel e comandante interino do Batalhão de Voluntários Realistas de Tomar (7-III-1834). Foi senhor da casa e morgadio de Fontão em Tabuaço (Fontão Seco), cuja belíssima Casa de Fontão, em Tabuaço, apresenta uma pedra de armas esquarteladas: 1.º - PEREIRA, 2.º - FERREIRA DA MOTA (?); 3.º - CARDOSO, e 4.º - ALMEIDA (?); sobrepujado por um elmo cerrado, encimado pelo timbre de PERREIRA.
André Ferreira da Cunha e Almeida da Motta Cardoso Pereira de Gouveia (1788-1869) |
Nasceu a 10-XI-1798 na Casa do Outeiro, em Ferreira de Aves, concelho de Sátão, filho de João Cardoso Teixeira da Mota e Gouveia, e veio a falecer já viúvo a 6-VIII-1869 em Ferreira do Zêzere, terra da sua mulher, D. MARIA BENEDITA DA COSTA RESENDE MALDONADO DA SILVEIRA, senhora das Casas da Cabeça do Carvalho, da Quinta do Adro e do Vale, em Ferreira do Zêzere.
Foi deste ramo familiar que o M. Leal tirou os seus pseudónimos literários, atrás referidos: MANOEL FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO, e PEREIRA DE GOUVEIA.
Armas da Casa de Fontão. Esquarteladas de: 1º - PEREIRA, 2º - FERREIRA DA MOTA(?), 3º - CARDOSO, e 4º - ALMEIDA(?) |
Casa de Fontão, Tabuaço, Viseu. |
Casa do Adro, Ferreira do Zêzere. |
O M. LEAL conviveu com
alguns intelectuais da sua época – poetas e escritores –, mas era nos amigos das
tertúlias de café e colegas de faculdade, moradores no bairro que preferencialmente
frequentava (Areeiro e Alvalade), que procurava arrimo.
Algumas das suas amizades
literárias, dos finais dos anos 60, princípio dos 70, são conhecidas. Entre
elas, estão alguns intelectuais do icónico e já desaparecido CAFÉ MONTE CARLO,
na Av. Fontes Pereira de Melo. Aí privou
com o poeta HERBERTO HELDER, o poeta e crítico literário GASTÃO CRUZ, assim
como a escritora MARIA VELHO DA COSTA.
Manoel Leal |
O MÁRIO SÉRIO, “ilustre desconhecido, que frequentava o café
Copacabana, era um apaixonado por Brecht, Stanislavsy, Rimbaud, Verlaine, entre
outros”, segundo refere o M. Leal nas suas notas. Este era funcionário
bancário, escritor, e um dos críticos e dramaturgos mais interessantes e
ignorados no panorama do teatro português contemporâneo. Deixou-nos cinco boas
peças, nenhuma delas posta em cena. A ele se ficou a dever a encenação, pela
primeira vez em Portugal, de trechos da obra de Bertolt Brecht. No fim dos anos
60, dirigiu e encenou Grupo Cénico do Instituto Superior Técnico.
Foi ainda amigo do poeta CRISTÓVAM PAVIA – pseudónimo que usou, entre outros –, cujo nome completo era FRANCISCO ANTÓNIO LAHMEYER FLORES BUGALHO, ao qual dedicou alguns poemas e, tal como ele, era uma personalidade em conflito com o mundo.
Manuel BoavidaSantos e Manoel Leal, 1970? |
Quando o conheci, frequentava
um grupo de amigos que tinham como paradeiro a Pastelaria Cinderela ao Areeiro, nos finais dos anos 60, onde tinha
um grande amigo, o JOSÉ MANUEL BOAVIDA DOS SANTOS, então residente no mesmo
prédio, com o qual tinha uma grande similitude de feitio, reservado e tímido, tendo
com ele planeado a abertura de uma Livraria/Tabacaria – o Manoel era um inveterado
fumador – negócio este que não chegou a concretizar-se. Quanto ao BOAVIDA, ainda
chegou a inscrever-se em medicina, acabando por exilar-se em França em Maio de
1972, em cuja universidade da Sorbonne em Paris se formou em Filosofia, de onde
regressou a Portugal em 1994, e hoje é um distinto catedrático do Departamento de Comunicação e Artes da Universidade da Beira Interior (Covilhã). Por este motivo o M. Leal perdeu um dos seus grandes amigos, acabando por se mudar, com outros frequentadores deste
grupo, para outro centro de convívio, recentemente inaugurado e na moda: a Pastelaria Moinho Vermelho (actual Maria Canela).
Neste grupo de amigos da Cinderela, entre muitos outros, ainda
recordo alguns.
O MANUEL AMORIM, então um singular aspirante a
pintor que se fazia acompanhar quase sempre da sua caixa/estojo de pintura em
mogno, que acabaria também ele por se exilar em Paris por volta de 1969, na
companhia do Manuel da Silva Ramos, escritor covilhanense então galardoado aos 21 anos de idade com o Prémio de Novelística Almeida Garrett (1968), pelo seu romance Os Três Seios de Novélia. Este autor, num dos seus assomos de excentricidade surrealista que então cultivava, chegou a passear-se no Chiado, num impecável terno preto de muito bom corte, com uma pequena gaiola contendo um canário amarelo... O AMORIM, em Paris, acolheu-se inicialmente à protecção dos célebres pintores Maria Helena Vieira da Silva e seu marido Arpad Szénes, tendo aí frequentado alguns dos melhores ateliers desta época, só regressando a Portugal no início do século XXI.
Manoel Leal e António Matos Guerra; Versailles, Paris, 1973? |
Não sendo possível recordar todos os então muito jovens elementos do grupo, não posso deixar de referir: os dois irmãos ROOVERS DE ALMEIDA (Arq. Luís e Paulo); o ANTÓNIO MATOS GUERRA (e seu irmão JOÃO), que veio a ser engenheiro civil, com o qual o M. Leal chegou a fazer uma viagem a Paris no início dos anos 70 onde visitou alguns amigos exilados; e a MARIA MARQUES CALADO que viria a ser uma distinta investigadora e docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.
Com a saída para o exílio de vários elementos deste grupo, e o abandono de outros logo no início dos anos 70, muitos elementos, incluindo o MANOEL LEAL, debandaram para outros espaços de convívio, como a Cervejaria Munique (ao Areeiro), a Pastelaria Moinho Vermelho e a fronteira cervejaria O Pote que então estava aberta até altas horas da madrugada e era palco de altas cachaçadas e ponto de encontro de militantes radicais da direita e da esquerda de então (na Av. João XXI), uma espécie de quartel general da boémia residente nestas paragens, não descurando muitas outras casas do género nas imediações.
Quanto aos colegas de
Direito do M. LEAL, com assento no Moinho Vermelho, muitos há que já
não recordo.
Manoel Leal |
Havia ainda, mais
esporadicamente, o PAULO FILIPE SARAIVA, irmão mais novo do anterior, estudante
de medicina e actualmente médico, então o grande desportista do grupo que era
jogador da prestigiada equipa de rugby
do CDUL – Centro Desportivo Universitário de Lisboa.
O JOÃO VARGAS MONIZ, de
temperamento mais grave, veio a ser um alto funcionário da administração
pública, assessor de vários governantes, chefe de gabinetes e secretarias
gerais, gestor público, que, com o seu engenho, deu corpo às Lojas do Cidadão.
O JOÃO COITO, afável e com
grande fineza de carácter, falava quase sempre em sussurro e tinha sorriso tímido;
uma jóia de pessoa e um amante dos livros que trabalhou na Livraria Barata (Av.
De Roma) e na livraria do Centro Comercial Arco Iris (Av. Júlio Dinis, ao Campo
Pequeno) que se tornaria numa das melhores livrarias de temas jurídicos, graças
à sua iniciativa. Concluiu o seu curso de Direito e veio a ser magistrado
judicial.
Manoel Leal. |
Foi por altura da frequência
do Moinho Vermelho, que o M. LEAL conheceu a ANA, à qual uniu o seu
destino, enlace este que não duraria muito tempo, o que então lhe terá quebrado
o ânimo e partido o coração.
É sabido que foi um dos
melhores alunos do Colégio Académico, onde esteve sempre no quadro de honra durante o secundário, além
de ser dotado para o estudo do Direito onde chegou a fazer 21 cadeiras com razoável
aproveitamento, chegando até ao 5.º ano. Porém faltava a muitos exames, por
achar, infundadamente, segundo referiam os colegas, não estar preparado para
fazer uma boa prova. Acabou por não concluir o curso, que abandonou.
Manoel Leal |
Arranjou um emprego no
Estado (Ministério do Trabalho?), ao qual não se terá adaptado, acabando por
ser “transferido” para uma qualquer função subalterna na Biblioteca Nacional de
Lisboa, da qual ele não gostava, e onde o encontrei muitas vezes no início da
década de 80, quando me confessou ter que “aguentar para pagar as contas”.
A última vez que o encontrei,
fui numa situação inusitada.
No fim de uma cálida tarde
de Verão, já a beirar a entrada do Outono, fui até à Praia do Rei na Costa da
Caparica para dar um mergulho. Quando estava estendido no imenso areal
semideserto, vejo ao longe, ao correr da linha de rebentação, vindo do lado da
Costa da Caparica, uma solitária e estranha figura a caminhar lentamente na
areia, vestida com um convencional fato preto, calças um pouco arregaçadas, com
as meias e sapatos pretos numa das mãos, e um ou dois livros na outra…
Para meu espanto era o M. Leal
que lá vinha ao longe, com uma passada curta. Mal me avistou, logo se
dirigiu a mim, com o suor a escorrer-lhe em bica da sua face. Numa breve
conversa referiu ter saído mais cedo do emprego para vir apanhar um pouco de ar
… Trocou comigo mais algumas afáveis palavras
de circunstância e seguiu o seu caminho, como quem passeava tranquilamente num qualquer boulevard citadino.
Era este o inenarrável MANOEL
LEAL que eu conheci: um outsider, um
pouco excêntrico, sensível, inteligente e criativo; sempre insatisfeito com o
mundo que o rodeava, cujas atitudes por vezes invulgares suscitavam alguma
curiosidade e admiração pela parte de quem com ele privava.
Hoje, com muito pesar meu,
lamento ter perdido o contacto com ele.
Nunca mais o vi.
Que
esteja em Paz.
João
Trigueiros (Jotri)
Setembro / 2018
◄♦►
Obra de MANOEL LEAL
(um provável Fernando Pessoa, ainda desconhecido)
Deixou milhares de belos poemas e textos de prosa poética, muitos dos quais dedicados a vários autores que admirava, alguns dados a conhecer pelo seu amigo.
A FERNANDO PESSOA, e aos seus principais heterónimos (Álvaro de Campos, Ricardo Reia), dedicou uma profusão de textos poéticos: «E se fôssemos, / Fernando, ao brandy imaculado da Metafísica, Pessoa sempre impessoal, / ubíqua figura».
Sobre ARTUR RIMBOUD, o qual
muito admirava e cuja alma inquieta lhe inspiraria alguma afinidade, escreveu belos
poemas e textos, pois, este poeta maldito,
segundo refere, “Que Rimbaud, em mim,
pessoal, ressoe”, pois viveu “Uma
Época no Inferno como a minha”, e “entre
nós existe voz, conversa, alguém diria afastada da fonte”…
Que o futuro lhe faça
justiça e a sua imensa obra inédita – por onde andará? –, seja preservada e
entregue à Torre do Tombo para ser colocada à disposição dos investigadores.
Quiçá estaremos na presença
de um novo Fernando Pessoa, que nos deixou o seu baú de manuscritos, para nosso
deleite…
LIVROS PUBLICADOS
(sob diversos pseudónimos)
MANOEL DA CUNHA E MELO
«Voz Equívoca», Ed. De autor, 1975.
MANOEL
FERREYRA DA MOTTA CARDÔZO
-
«A Duração da Eternidade», Ed. de autor, Janeiro de 2007.
- «A Imperfeição da Felicidade», Ed. de autor, Dezembro de 2007.
- «A
Noção da Inocência», Ed. de Autor, 2008.
MANOEL DA CUNHA E MELLO
- «Fidelidade de um Fauno», 2007-2008.
MANOEL DE SOUZA-VALENTE
♦
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (1941-2016) |
Deixou-nos alguns textos
sobre os poemas de "Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo”, pseudónimo de
Manoel Tavares Rodrigues-Leal:
- 1º texto –
Sobre «A Noção da Inocência»
(2008)
Do seu primeiro livro, A
Duração da Eternidade, eu dizia: «Numa escrita indócil, viril, entre o
cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e da marca
do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as
cicatrizes e os dias felizes, na convicção da palavra poética.»
E terminava: «Assim o acreditamos, pela publicação deste
seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que
desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retomando em outros Outonos
suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas».
Com a Noção da
Inocência confirmamos a qualidade da escrita poética, projectada não só
neste terceiro livro, como num quarto já muito próximo de nos chegar às mãos.
E se no primeiro livro o Poeta se confrontava com o ofício
da escrita, como um acto de alegria e de dor, e ainda como o
binómio/efemeridade, neste segundo livro, o sujeito poético remonta à idade da
inocência, à beleza quase perfeita dos corpos e à descoberta do amor.
a infância ainda ecoa.
ainda eclode.
tão íntima. tão lúcida.
atravessa os dias. como
uma seta.
que inflige ternura.
X
a exuberância crucial do
desejo. ocorre. essa desmesura.
essa distância dos corpos.
e das colinas. e sua errância. e efémera.
irrestrita. mas triste.
como descrevê-las. velas e loucura.
e toda a adolescência.
magoada. que não deslumbra.
mas ainda navega. navio esbelto.
que não foge do fogo.
nem exorbita da penumbra.
A idade da inocência cumpre-se como um tempo de
expectativa, de curiosidade, como um fruto ainda verde, mas promissor de um
outro tempo em que Eros e Apolo se unem, insinuando uma maturidade sensual.
acordo para o verão.
vulnerável.
inaudível.
que cai como uma bênção.
ou um anátema.
acordo para o teu corpo.
que é um corcel. ágil e alegre.
moreno. como a rosa da
tarde. que declina. e se rasga. cruel.
e que. de um prazer
íngreme. se alague.
O sujeito poético transporta, porém, o germe da dúvida, da
perenidade do amor, da dor que o fim implica e di-lo nos versos:
ah ter eu a leveza de
haste.
de uma primavera remota.
por que tu te enfeitiçaste.
a noção. incólume. do meu
íntimo desastre.
Confrontam-se agora dois tempos: presente/passado
transfigurados em realidade/ memória, em que nos dias longínquos da juventude
os corpos eram belos, o amor, emoção e prazer. No presente, a vida flui para um
destino irremediável, rio sem regresso.
jamais teu corpo florirá.
como outrora
floriu. jamais jorrará a
seiva ardente.
que jorrava. nos dias
auspiciosos e felizes
agora teu corpo cumpre o
seu destino. inexorável
(...)e inocente. que é a
morte. perene. obscena. irrespirável.
Visão pessimista e dolorosa só colmatada pela recordação da
mãe, da casa, porto seguro, sem enganos e sem traições, ultrapassando a
efemeridade da vida e o «olvido vil da morte»
a infância perfaz-se em
ti. ó
mãe mansa.
ó casa. ilesa.
onde vivi. e o ouro do
gesto floria.
sem engano.
sem a dubiez das
noites.
e o gesto floria. exacto.
e nunca mais se
extinguiria.
ó mãe. mansa e imensa.
cujo rosto jamais se
apartará de mim. e que eu ainda vislumbro
rosto incólume. que eu
sempre invocarei.
contra o olvido vil da
morte.
Reiterando por outras palavras o que
disse anteriormente, a poesia de Motta Cardôzo é trabalhada no ouro da palavra,
numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em
imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o
pode fazer. Por isso, é urgente que a sua poesia seja enquadrada na nossa
melhor literatura.
Elsa Rodrigues dos Santos
- 2º texto -
(Publicado no boletim
literário e no site de recensões da SLP – Sociedade da Língua Portuguesa)
Três epígrafes, duas de Rimbaud e uma de Ricardo Reis abrem
o livro sob o signo da descrença da vida e da existência de liberdade.
«Merde à Dieu» diz Rimbaud, «Porque só na ilusão da
liberdade, a liberdade existe…» acentua Ricardo Reis numa das suas Odes. Assim,
logo à partida as epígrafes apontam-nos para uma poesia com um certo cepticismo
e mágoa.
O primeiro poema é uma reflexão sobre o ofício da escrita e
o autor fala-nos de «loucura», de «uma frustre maré interior», «o inexorável
rigor» e «depois a remota eternidade de um corpo».
Jogando com o conceito de «literatura», que é ofício
eterno, mas também «leitura e ócio», o poeta termina ironicamente rimando com a
palavra «literadura», porque a escrita, se é algo de eterno, implica também
sofrimento.
No poema II, o poeta, na sequência do primeiro, afirma. «e
não dura o dom». Confronta-se, então, o sentido de eternidade com o de
efemeridade, isto é, eternidade, na qual o poeta acredita e efemeridade que
constata. E aí reside a dor do sujeito poético, entre o prazer fugidio das
palavras e o projecto de escrita para a eternidade que se confundem com o vazio
dos dias entre «a vã cobiça de um corpo», «prazer efémero», o desejo de amor e
«a morte suprema» desse mesmo amor, dessa mesma vida.
Fica apenas a ilusão de que a sua escrita permanecerá
eternamente («luar de letras consentidas» (…) «assim as guardo. cioso» «até à
circulação da eternidade. Suponho eu.»)
No poema III, o «eu» surge em forma de Outono que «vem
todos os anos. outonos suaves. como a mãe gostava. eternos e não duram muito.»
«Outono», não apenas como símbolo do declinar das estações
e da existência, mas como algo de doce, de sensual, de recordação de um amor
que «morreu há muito e é eterno e outono talvez.» Eterno porque volta sempre,
ainda que passageiro.
Institui-se com persistência o binómio
eternidade/efemeridade na escrita e sobretudo no amor porque «até a eternidade
morre vilmente» (V).
«Cristo morreu como se fosse eterno/ como se fosse manso
rio de um continente desconhecido» (VI).
Eros e Tanatos se digladiam entre o ser e o estar, entre a
essência e a vivência.
Erotismo e vida, erotismo e morte (oh vã comédia da vida)
fundem-se na alma do poeta através da arte das palavras.
Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela
virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e a marca do modernismo na
criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os
dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética.
Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro
livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não
ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes,
enriquecendo as belas letras portuguesas.
Elsa Rodrigues dos Santos
Este texto encontra-se
publicado no site de recensões da Sociedade da Língua
Portuguesa (SLP).
POESIA
A RIMBAUD
A dicção
dos dias tem vertical importância:
Desliza
como vago rio que corre para a Foz,
E que
festa apetece quando morre o que se supunha imortal.
Nada
sei, Rimbaud morre em Marselha, e entre nós existe voz,
conversa, alguém diria afastada da fonte.
E que importa a poetas malditos o que os outros, latente ou expressamente, ladram: é uma oceânica vogal talvez…
E que importa a poetas malditos o que os outros, latente ou expressamente, ladram: é uma oceânica vogal talvez…
Lx.
9–7–76
Caderno:
Livro do amador nómada.
Sob o
som vegetal da nudez,
(Deslizando
o comboio), relembro a metamorfose da morte de Rimbaud:
Eis a
ilação de uma profusa e eloquente loucura!…
Abençoado
seja Rimbaud pela sua comovida lição de nostalgia e brancura,
Omnipotente
lua de primordial unidade… Assim o acolho em meu regaço, e talvez
Que
Rimbaud, em mim, pessoal, ressoe.
Cintra — Lx.
8–2–77
Caderno:
Do ócio e meditação em Cintra
O retrato de Rimbaud oscila.
“Uma Época no Inferno” como a minha. São a imaginação latente do Inverno
E depois “Pierrot le Fou”, de Godard: assistimos
Ao filme e é Rimbaud, a liberdade ilimitada de Rimbaud,
sofremos sismos.
E minha voz, nua, voou: é vida perene.
Ouço o violino de Paganini:
Meu desejo o ergui, e algures o perdi.
Oh luxúria de Outono omitida: nas almas já neve.
O que, de perfil, me desista, quem o escreve?
E oscila o retrato que eu hei-de destruir.
Marselha, sua morte comovida, comovente… mas chove uma chuva de fingir…
Lx. 28–8–76
“O divino imanente no humano”
O reino de Rimbaud
“Une Saison en Enfer”
Como
conjugar o verbo divino e duplo com o uno,
o
objecto inscrito com a mera descrição?
O livro
reabre-se: é o nome nocturno de Rimbaud:
obscura
habitação de beleza, sua paixão clandestina, rapto, repto.
Quem o
invocou, nomeou as mãos decepadas do prazer, o uno dúplice e sua súplica.
Lx.
2–1–75
Caderno:
Limae Labor
A
verdade essencial da poesia radica na revelação. Aquilo que dota de mediunidade
e génio a poesia de Jean-Arthur Rimbaud é a verdadeira revelação (a revelação
do ser e do real) e não a trivial, a verdadeira navegação e não o porto (digamos,
a morte…)…
A
criação poética implica a meditação e a habitação da transcendência do
autêntico acto poético, da sua interrogação imanente e da possível resposta ao
real que, em Rimbaud, é intuída e lhe é revelada: não divinamente como é comum
em certa poesia, mas humana, visceralmente humana, como algo de indelével.
Navegação,
sim, mas nua e una, do verdadeiro devir humano enquanto desastre, erro e
errância do ser assumidas, e até resumidas, que Rimbaud exemplarmente encarna.
Assim se
cumpre, se exaure, com Rimbaud, a missão essencial da poesia que consiste em
revelar as raízes humanas profundas, afinal o verdadeiro dom divino que aquela
encerra e corresponde à ideia do mal, subjacente ao autêntico acto poético.
Lx.ª 15/11/96
Caderno:
Ser insular
Ilha de Lesbos
É sol do
que sou, cativo por pensamento.
Uma
nostálgica nobreza, algures pagã.
Desejo
desejar o desejo do seguinte: manhã acesa
que
lembro grega e lendária: Sappho
mulher
cuja linhagem, linguagem poética
era
transeunte, beleza ajoelhada, divina e terrestre.
Habita
agora o Olimpo, linda, serena, sábia como convém
a um
poeta que, despojado, habita sua ilha, toca sua harpa, mapa de ninguém.
O seu
limpo pensamento, eterna adolescente, segregando desejo, segredo, semente.
Lx.
3–6–76
Caderno: O
umbigo da beleza
A PESSOA
Olha Daisy, quando eu morrer
espero que partas definitivamente para o Minho.
Não vais em busca do cadinho
que o já tens, grave e lindo, aqui em Lisboa.
Olha Daisy, quando eu não morrer
em boa verdade, aconselha-te a renascer
para que contigo case,
longe vá o agoiro e a frase.
Lx. 23/10/84
Caderno: O Sul das Maravilhas
As cartas de amor são ridículas, meu velho Álvaro de Campos,
mas ridículas, dizias, eram aqueles que não escreviam singelas cartas de amor.
De amor maiúsculo pingou um pingo esfíngico e gordo. E se fôssemos,
Fernando, ao brandy imaculado da Metafísica, Pessoa sempre impessoal,
ubíqua figura.
Era a frescura de risos de raparigas lindas, límpidas, tão íntimas, eram risos
trincados de rosas sem rigor nem alma.
E há Bach, Seixas, Mozart, uma longa lista de sábios em música,
afogados no tempo; mas tu Pessoa és sempre a geométrica pessoa trágica e traída.
Esquecia-me Pessoa: ambos somos ridículos em não escrever cartas ridículas
de amor, pois é manhã marcada, e quem trabalha cedo amanhece
mas com aqueles sorrisos, risos sonâmbulos, risos trincados pelas vidas,
amargos sorrisos maculados de quem, na pele e no rosto, ínvios caminhos conhece.
Juventude, juventude ressurge, mas jaz a arte de matar-me-te, arte articulada à vida.
Belas — 26–9–76
Caderno: Fragmentos de um livro dividido (anónimo do séc. XX)
Às vezes, visito as flores malditas do meu pensamento,
e que logro: lembra Pessoa e suas personae.
Não tem fórmulas felizes, domingos banais, aliais,
mas toda a estranheza de ser pensamento.
E o pensamento, a estranheza de o ser,
de que, pranto de prata e profuso e diverso desagua,
onde o verso se diverte em as têmporas e nas cãs do poeta,
que parte, se ausenta, de sê-lo meramente. E, ao amanhecer, não tem horizonte nem meta…
Lx. 3–7–76
Caderno: Livro do amador nómada
William Turner
A caligrafia da alegria e da loucura é frágil, abençoada:
Li, algures, em um antigo manuscrito iluminado.
Então, náufrago, banhei-me ébrio no primitivo mar.
(o firmamento, o pensamento dos teus seios de mármore e marfim)
O poeta, o pintor, embriagavam-se
em breves páginas de praias, nas vagas de um espírito crepuscular
e vagabundo (vogais acesas de Primaveras, propagadas).
Teciam as estrelas intactas, cabeças de doçura e de espanto,
porventura pranto.
Turner aguardava exangue (e exemplar), nos seus quadros, a claridade opaca
da mensagem imortal da morte divina.
Lx. 11–8–73
Praia da Areia Branca — 24–8–73 …
Artaud
Artaud — meu querido mestre da loucura
inspirai-me a pobre poesia quotidiana. Acordada
quando a dor se crava na boca mais recente.
Afinal, Artaud, também sou actor desse teatro transeunte
que tanta gente tem.
Eu poiso o meu gesto na tua poesia, dantes, de amanhã
e é tão nítida, tangente a tua loucura que ali jaz, que eu enlouqueci.
Afloro a loucura e há harpas de beleza na loucura que na tua poesia li.
29/05/76
Do caderno: O umbigo da beleza
a Ricardo Reis
Condenaram-me os deuses à lisa loucura
Terrestre. Aceita, isento, livre, a dádiva antiga e divina. Celebra
A alma incólume das odes de beleza, as árvores imemoriais da alegria.
Sê o rei de um reino povoado de puros brilhos e espelhos de inocência.
Lx.- Março de 73
Caderno: Limae Labor
No reino de Ricardo Reis
Cada instante efémero é intacto, transeunte e antigo.
A nítida ideia dos deuses emerge jovem e pagã
Como a opulenta arquitectura de um jardim
suspenso na manhã.
a Alberto Caeiro
Sê simples e calmo como Caeiro o era
Imperturbável percorre o teu caminho como o
dia que amanhece
E se não distingue dos dias adiados e
extintos como da recordação dos dias que
meramente o serão
a Ricardo Reis
No reino de Ricardo Reis
Cada instante efémero é intacto, transeunte e antigo.
A nítida ideia dos deuses emerge jovem e pagã
Como a opulenta arquitectura de um jardim
suspenso na manhã.
Homenagem a Mário Cesariny de Vasconcelos
Assim
acontecem e se tecem os algarismos da morte.
A mais
marginal e biográfica.
O que
recua, em o mármore da memória, é a nobilíssima visão da madrugada omnipotente.
O
bastante é belo, o cerne o crânio do efémero e antiquíssimo diurno
Lx.
12-2-77
Caderno:
A composição do espaço
In “A
IDEIA”, n.º 81/82/83; Évora, Out. 2017, p. 65
Herberto Helder
Exactamente,
um estilo[3], como diz o Herberto em este[4] estio
e em “Os
Passos em Volta” que, ambos, demos, cicatrizados de abandono.
Mas
amigo Herberto tu és grande, um grave fenómeno em o universo da poesia.
Eu,
menor poeta escrevo que escrevo que não devia escrever, porque fábula,
banquete, Outono
da
infância que em mim se perfez: nudez de menino a mexer nada e exílio,
menino
que interpela um deus anónimo, a própria morte, menino e sua sabedoria.
Lx.
12–8–76
Caderno:
“O Reino do Rigor” ou “Reino Efémero”
Posse
Hoje
deixa-me inventar
O
silêncio dos teus silêncios
E o
prazer que escorre dos teus dedos
E as
madrugadas que concebeste
Hoje
deixa-me inventar
O corpo
de luar que me abriste
E a
pergunta dos teus medos!
Hoje
deixa-me inventar o Outono do teu sorriso triste!
Lx., 27/11/964
à Ana
lugar
grave em que, táctil, te inscreves,
celebrando
as sombras, que, efémeras e aéreas, teces.
que
praia imperfeita rasa o pranto do olhar,
na
ciência divina em que te esqueces.
Setúbal-15-6-75
Caderno:
Da Periferia do Corpo
“Telegrama”
(Para a Ana)
Em a
manhã molhada (esparsa e cinzenta chuva…),
Que
escamas de cama ausente…
Por
isso, envio-te, de amor, um telegrama:
“Amo-te
em o impossível amor, Stop. És um espaço volátil,
Stop.
Olha Ana ou Daisy. Embarco para os Brazis, Stop.”
E em o
objecto inscrito de amar, que nobreza de amor habitável.
Não sou
amante mas seu vulto. E descrevo a irreversível curva dos 35 anos ou enganos…
Manoel
Tavares Rodrigues-Leal
Lx. ou
Cintra 12-14/02/1977
Caderno:
“A composição do espaço”
Escrito
aos 35 anos …
para a Maria João
Eu sei que não vieste
Na tarde circular
Amanhã quando o mar
Sorrir deitado na areia
Direi que é uma rapariga alheia
Ao amor e à rosa que vou trincar.
Lisboa — 29/01/88
para a Myrian
“Il y a
toujours un peu de folie
dans
l’amour. Mais il y a toujours un peu de
raison
dans la folie.” — Nietzsche [inscrição no manuscrito acompanhando o poema]
De
Myrian soube o curso sóbrio das consoantes do desejo. As colinas
insones
de um olhar obsessivamente azul. As sílabas de neve dos habitantes
do seu
país natal. O som do corpo de Myriam repousava no sangue dos longínquos
poentes
pungentes da Bélgica. O mar (o de Myrian) afagava o marfim
da sua
grave brancura. Com Myrian não percorri os jardins antiquíssimos do desejo.
Aves
aves do desejo divinizado que seus dedos desvendavam. As narinas embriagadas
pelas
breves brisas do litoral. Ó espelhos do Sul nos quais se miravam os olhares de
quartzo
de
Myrian. Ó quente espectáculo das pétalas do espanto. Ó crepúsculo de loucas
praias
do Sul.
Outono da nossa nudez nupcial.
Lx.13–7–72
para a Isabel
o que é
ideia nítida, rigorosa, suspensa?
idade
implícita, o meu gesto jaz…
que doce
canto, cálices prenhes de desejo…
meço
metal, o mármore úbere de um beijo.
que
desejo geométrico. que nua estátua, cúmplice espelho…
Isabel,
umbigo de beleza, meu instante distante…
Lx.
5–6–76
Caderno:
O Umbigo da Beleza
Um poema
inédito (2ª versão), evocando o filme “Blow-Up” (1966), de Michelangelo
Antonioni.
“Blow-Up”
São os
jardins primordiais e deslumbrados
E seus
mitos efémeros, e as longas áleas nimbadas de buxo.
E os
abraços, beijos demorados e quentes e perturbados.
E à
noite, ermo o jardim, como se tecem festas, como abuso
Do areal
do luar que nos ensina, amantes, amados, seu brilho profuso.
Passeemos,
sob a liberdade do luar, em as áleas passeemos,
E
inventemos uma nova lua – loucura de quem ama o luar, de novo passeemos.
Que linda
loucura, a traçámos, porventura delicados e castos.
E quando
abdico de loucura, mergulho em ígneas bocas de tempo e sua usura, saturados.
Manoel
Tavares Rodrigues-Leal
Lx.
31-8-76
PENÉLOPE
PENÉLOPE
fia a auréola do tempo
Adivinha
a riqueza da memória
Espera a
vinda de ULISSES seu amante desejado
E sob a
abóbada do céu abençoado
Tece-se
a noite num manto desgrenhado
PENÉLOPE
nunca se foi embora
Dádiva
transparente e de glória
Curvou-se
docemente nos ombros da vigília do vento.
Manoel
Tavares Rodrigues-Leal
In Nova
Águia, nº14, 2.º semestre, 2014, pp. 265.
(Perfil de Sophia)
reerguer
o equilíbrio grego da beleza: medida
do homem
e do mundo, eis a alquimia a embriaguez
de
Sophia, consumida através do templo antigo do poema.
Lx. 25-1-79
Caderno:
Limae Labor
Revista
Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, p. 225, Sintra, Zéfiro.
Sophia
Sophia
de Mello Breyner Andresen
(após
leitura de Dual)
imagem
fugidia
que
emerge da antiguidade do dia,
e morre,
insone e perpendicular,
irmã da
unidade e da medida do olhar.
Lx.
18-3-73
Caderno:
Limae Labor
Manoel
Tavares Rodrigues-Leal , (2014), 1º semestre, «(Fernando Pessoa)», Nova Águia,
nº13, p. 160.
(Fernando
Pessoa)
Aqui a
superfície do mar é profunda, profusa e lisa, (prateada de pranto):
Aqui
irrompe a presença impessoal de Fernando Pessoa:
As
escamas do mar jazem sob o brilho de luzes antiquíssimas. E o seu nome,
suspenso e nomeado, ressoa.
Sesimbra,
30-6-73.
Caderno:
Limae Labor (1973).
e assim nasceu. e falava.
assiduamente.
era como o verão. que se
abrira. recente.
como um clarão rubro de
inocência. bebia
então taças tecidas de
espanto. o
exílio.
iniciara-se. como uma teia.
tecida lentamente. por
estranha e eterna aranha.
quando parido. por um
período de vida.
fecundo. a mãe
linda. morrera ao pari-lo.
que
eternidade vazia e vã. como
a de
um deus. mítico ou não. que
interessa isso.
para a posteridade.
Manoel Cardôzo
lxª18.07.2003
De A Duração da Eternidade
Filme documentário: "O retrato de Rimbaud oscila" ("Le portrait de Rimbaud oscille").
Um olhar sobre Jean-Arthur Rimbaud – por Manoel Tavares Rodrigues-Leal.
Realização: Luís de Barreiros Tavares e Daniel Monteiro (Fevereiro - 2021).
Este filme documentário foi realizado no âmbito da Edição “Rimbaud no poema – Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud” na Revista Triplov (Arte, Religiões e Ciências).
Neste tributo publicaram-se “Vinte e dois poemas, quatro prosas poéticas e três cartas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud” (Junho – 2020). Agradecimentos a Maria Estela Guedes (Triplov).
"O retrato de Rimbaud oscila" (título do filme e verso de um poema de Manoel T. R.-Leal.
https://youtu.be/186ll2laggk
Vinte e dois poemas, quatro prosas poéticas e três cartas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal evocando e ecoando Jean-Arthur Rimbaud
https://triplov.com/revistaTriplov/vinte-e-dois-poemas/
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Obs:
Pobre país este em que o
apoio à produção das vacas leiteiras afectou uma verba quase gigantesca (7+4
milhões de Euros em 2016), comparada com o poucochinho
– quase zero – destinado à produção literária (135.000,00 Euros para bolsas de
criação literária em 2017).
Não ponho em causa as
necessidades do corpo – o leite –, mas não desprezo uma das necessidades do
espírito – a literatura ...