Arnaldo Benavente Ferreira (1923-2000) |
ARNALDO BENAVENTE FERREIRA (1923-2000) foi um dos grandes pintores da temática lisboeta, com o qual me cruzei muitas vezes na segunda metade da década de 70, e passo aqui a evocar.
Estes fugazes
encontros, ocorreram muitas vezes ao cair da tarde quando eu descia o Chiado em
direcção à estação do metro do Rossio, depois de terminar as aulas na Escola
Superior de Belas Artes que então frequentava.
Artista incompreendido, tinha uma compleição seca e elegante que destoava dos repetidos insultos que vociferava de "São todos uns patifes! Calões! Canalhas! Biltres! ", quando caminhava pela rua ou entrava nos cafés e livrarias do Chiado – dirigidos não se sabe a quem!...
Embora se avente que estes impropérios, que assustavam quem não o conhecia, eram endereçados a quem “dava menos valor à cultura do que a tudo o resto”, eu, na minha fantasia, talvez fruto da recente mudança de regime, imaginava-os dirigidos aos fautores da Nova República que então despontava, ainda sem tantos “calões” e “patifes” como o futuro demonstrou, e ele terá vislumbrado… Esta mudança de regime, ter-lhe-á frustrado encomendas entre os apoiantes do anterior sistema, devido à falta de meios e à sua queda em desgraça. Daí a sua revolta e o seu visceral desagrado, segundo eu presumia…
Por esta altura, era vê-lo desfilar Chiado acima, num passo miudinho e apressado, com os seus sapatos de verniz reluzentes, o cabelo repuxado para trás com brilhantina que lhe emoldurava um semblante grave e pálido, numa elegância “retro” com o seu fato preto ou cinzento escuro, colarinho de goma de uma alvura inexcedível, preferencialmente de gravata branca, lenço branco e um obrigatório grande cravo da mesma cor na lapela.
Foi este seu ar
peculiar, por vezes com um bouquet de cravos brancos na mão, que
o levou a ser alcunhado de “o sempre noivo”, “o noivo eterno” ou o “pintor da
noite”.
A sua figura
singular, melancólica como ele próprio se definia, avesso a todo o convívio,
quase sempre com um chapéu de feltro na mão e muitas vezes com um quadro ou uma
pasta com esquissos debaixo do braço, não deixava ninguém indiferente. Os surtos
de agressividade verbal sem destinatário conhecido, assim como o seu isolamento
social, aliado à temática sombria da sua obra sobre Lisboa nocturna sempre vazia
da presença humana, parecem indiciar uma provável perturbação da personalidade que,
ainda que ligeira, se foi agravando com o avançar da idade.
Arnaldo Benavente Ferreira (1923-2000) |
Nasceu numa família de parcos recursos, no típico bairro da Graça, a mais alta colina de Lisboa; um bairro com alma e belíssimos miradouros que terão contribuído para lhe aguçar a sensibilidade. Ao certo, sabemos ter residido na Rua da Verónica à Graça, e dizia-se que, mais tarde, veio habitar perto Elevador da Bica/Calçada do Combro, o que justificaria a sua frequente presença no Chiado, facto este que carece de confirmação como muitas outras lendas que sobre ele efabularam. No Chiado frequentava amiúde a Livraria Bertrand e a Pastelaria Bénard, então dois dos ícones da elite intelectual e da burguesia lisboeta.
Estudou na Escola Artística António Arroio e na Escola Industrial Afonso Domingos, esta última uma referência do ensino técnico profissional que privilegiava o ensino do desenho elementar de arquitectura e de máquinas, tal como o de pintura decorativa, e era conhecida pela “Universidade de Xabregas”, tal a qualidade do seu ensino na primeira metade de Novecentos. Nestes dois estabelecimentos de educação, não concluiu os estudos, pois começou a trabalhar cedo em empregos mal remunerados que lhe cerceavam a ambição de ser pintor.
Trabalhou como desenhador de
joalharia, até que, a seu pedido foi orientado pela artista plástica MARIA
ADELAIDE LIMA CRUZ (1908-1985) e abraçou definitivamente a sua vocação de artista.
Esta sua mentora e vizinha, pela qual Arnaldo Ferreira demonstrava uma dívida de gratidão, residia na Rua da Graça do mesmo bairro, e descendia
de uma família ligada às artes plásticas e á música. Foi discípula do notável
pintor Carlos Reis (1863-1940), além de bolseira em Paris durante um ano (1934), tendo
dispersado a sua criatividade artística como pintora, cenógrafa, figurinista e
cartoonista, assim como professora de alguns aspirantes a artista.
Marginalizado pelos académicos bem-pensantes, quiça devido á sua falta de sociabilidade e de escola, e ao facto de não fazer parte do grupo de pintores do modernismo português, não lhe era dado o valor que merecia.
Solitário, mas com muita
determinação, com o seu pincel captava com alguma maestria os claros-escuros
nocturnos, numa visão onde as sombras pontuadas pela luz que fluía das janelas e
dos candeeiros transmitiam a realidade sorumbática que distinguia os bairros típicos
de Alfama, Mouraria, Bairro Alto e das diversas zonas ribeirinhas.
ARNALDO FERREIRA pintou mais de mil pequenos
quadros, a óleo ou a pastel, que estão espalhados por todo o país e estrangeiro
em colecções particulares e públicas, entre elas a Câmara Municipal de Lisboa e
o Museu da Cidade.
Morreu a 15-XI-2000 tendo recebido algumas homenagens póstumas, tais como a atribuição do seu nome a uma rua do Lumiar, em Lisboa (15-XII-2003), assim como a um largo na vila ribatejana de Benavente. A Câmara Municipal de Lisboa, atribuiu-lhe ainda a Medalha de Mérito Municipal, Grau Ouro (21-IX-2005), pela dedicação de toda uma vida artística à cidade de Lisboa.
Nós, estudantes de Bela Artes, ao vê-lo passar na Rua Garrett sentíamos uma espécie de admiração secreta por este “outsider” do meio artístico; tanto pela incompreensão a que era votado pela sociedade, como pelo desprezo hostil com que este retribuía.
O seu grande foco era a realização da sua obra plástica sobre a cidade amada perdidamente. Nada mais lhe interessava e, por isso, parece-nos que, à sua maneira, passou por este mundo oscilando entre a loucura dramática de um Van Gogh e a excentricidade feérica de um Salvador Dali.
Por tudo isso, e para que não caia no esquecimento, aqui lhe prestamos o nosso tributo e respeito.
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