2021-07-09

Eu tinha um sonho; o sonho de contribuir para um mundo perfeito… *por Carlos Santos




O dia acordou sorridente para todos, menos para esse grupo de sonhadores que hoje carrega sobre os ombros a sensação de que, a qualquer momento, o céu lhe irá cair em cima.

Professores que investem por esse caminho sulcado até à escola vazia de alunos, carregando na mala o peso das bombas-relógio que alguns lhes deixaram.
Conscientes de serem o elo mais fraco, nestes dias do juízo final (para os professores), ir para as reuniões de avaliação tornou-se numa provação e no derradeiro atentado à dignidade profissional e à verdade do ensino. Contrariamente a qualquer cidadão que, aos olhos da justiça, é considerado inocente até prova em contrário, o professor vai para as reuniões para ser julgado, forçando-o a ir preparado para se defender, pois já é culpado até prova em contrário; terá de conseguir demonstrar ter feito tudo o que estava ao seu alcance para que o aluno conseguisse passar de ano. Este é o dia em que todo o trabalho efetuado ao longo do ano baseado em tudo aquilo que aprendeu na sua formação e se propôs defender ao longo da sua carreira, em breve irá ser varrido para debaixo do tapete e substituído pelo politicamente correto.
Simplificando: ao longo do ano o professor tem a obrigação de elaborar e preencher todo o género de documentos, grelhas, planos e afins, para que o processo educativo seja rigoroso e justo e, no fim, passam todos, se não a culpa é dele que falhou.
Contudo, não deixa de ser curioso que os professores estejam agora a provar do próprio veneno, uma vez que, sempre que o ministério sugere algo, nas escolas sejam os próprios professores a reproduzir essa orientação superior em milhentos documentos para infernizar as suas próprias vidas.


É desanimador ser dominado por um sistema de ensino subvertido que nivela por baixo. No fim do ano, os alunos que realmente se esforçaram, ao constatarem que os colegas que não cumpriram, não se aplicaram, nem quiseram saber, foram premiados com positiva e passaram de ano, acabam por se desmotivar devido a essa injustiça, reconhecendo que o seu esforço foi inglório. Uma escola, que anda tão obcecada com os alunos que não querem aprender, multiplicando-se em planos, apoios, pedagogias e estratégias (tudo bem condimentado com imenso papelório), marginaliza os alunos que verdadeiramente se interessam, cumprem, mas, como não dão trabalho nem pesam negativamente nas estatísticas, ficam banidos para segundo plano. Suponho que esta seja, talvez, a maior frustração dos professores ao findar um ano – os alunos esquecidos; os alunos empenhados que foram segregados pelo sistema em favor daqueles que gozam com tudo isto.


Os alunos que absorvem o tempo dos professores ao longo e no final do ano letivo, habituados a fazer o que querem em suas casas, a não aceitarem um “Não” e a verem satisfeitas todas as suas vontades – assim como progenitores com dificuldade em saber assumir o papel de pais – nunca são responsabilizados. Pelo contrário, os professores são quem é sempre chamado a prestar contas sobre o insucesso dos alunos e (de acordo com o projeto MAIA) a justificar todos os níveis negativos, comprovando que as reuniões de avaliação de final de ano servem, essencialmente, para avaliar os professores e as escolas.
Em pleno gozo das suas férias, muitos pais e os seus rebentos estão pouco preocupados, enquanto o desgraçado do professor está na escola, esgotado e pressionado, a tentar justificar a justeza de dar negativa a alunos que nada fizeram ao longo do ano. O atual quadro normativo responsabiliza o professor pela preguiça dos alunos e pela irresponsabilidade parental dos progenitores.
Mas, no fundo, para quê que pais e filhos se hão de chatear, se já sabem que a negligência compensa e que tudo está formatado para premiar a mediocridade culpabilizando o docente?
No meio de todo este modelo de servidão dos professores, montado para agradar aos pais e alunos e para as escolas galgarem mais uns lugarzitos no ranking, todo o processo educativo transformou-se numa enorme fraude.
Onde fica, então, a responsabilidade do principal agente neste processo – o aluno?
Qual a razão de não ser chamado a responder aquele que é o maior responsável por esse jovem – por algum motivo chamado de encarregado de educação?


Numa sociedade em delírio carregada de direitos, cujos deveres ficaram apenas reservados para os professores, ultimamente, os todo-o-poderosos encarregados de educação e os alunos só são chamados para avaliarem o grau de satisfação pelo serviço que lhes foi prestado pela escola e pelos professores; em suma, para avaliar os professores.
E ninguém avalia a postura dos alunos e dos pais? A falta de material, de emprenho, de responsabilidade, a ausência de regras e a preguiça do aluno, não contam? E o que dizer da falta de acompanhamento em casa e da vida escolar, de educação pelo exemplo, de responsabilização do seu rebento e de envolvimento parental por parte de pais ausentes?
Estamos a criar uma geração ainda mais irresponsável, indisciplinada, imatura e egoísta do que a geração dos seus pais, primogénitos desta política do facilitismo.


As reuniões alastram-se ad eternum como uma maratona de resistência, até os professores cederem e lá passarem o aluno. Então, se o jovem tiver feito alguns tpc, só tiver perturbado as aulas esporadicamente ou sido indisciplinado de vez em quando sem ter espancado ninguém, serve na perfeição para somar os pozinhos mágicos para justificar o miserável nível três. Se nem isso se puder arranjar, então aproveita-se o facto de, pelo menos, ter estado de corpo presente nas aulas. De um lado, o docente tem este escape para onde é empurrado por toda a máquina que está montada pelas instâncias superiores; do outro – se quiser ser defensor da verdade e da justiça na avaliação – terá de preencher mais um amontoado de documentos e justificações a dar a tudo e a todos. Pai e aluno nada têm a ver com isso. O professor – esse incompetente que foi incapaz de dar uma resposta pedagógica acertada para motivar, ensinar e apoiar suficientemente o aluno para que passasse – é quem tem de dar justificações que convençam colegas, Direção, pais e aluno, isso caso não queria ter, também, de prestar contas à tutela pondo em causa o seu ganha-pão.


Beatificaram-se os meninos, a quem nada se exige e tudo lhes é devido, mesmo que a geração adulta viva em grande aperto financeiro. Desde roupa de marca, gadgets, net, jogos e toda a panóplia de brinquedos caros da moda, tudo contribuiu no processo de premeio sem esforço no qual se foram deseducando os filhos, sendo a escola obrigada a compactuar com este embuste educacional.
Depois, ainda existe aquela figura totalitária que controla os destinos dos professores. Se numas escolas o diretor se comporta como um parceiro facilitador do trabalho dos colegas, noutras há em que a arrogância e a insensibilidade do pequeno ditador conseguem ultrapassar a da própria tutela, transformando o trabalho dos professores num purgatório. Figuras, essas, que têm como prioridade satisfazer os pais e os alunos, olhando para os colegas como subalternos que não podem beliscar os seus propósitos megalómanos que nada têm a ver com a qualidade do ensino.


Os pais, que em grande parte apenas veem a escola como um depósito onde possam deixar os filhos e só se lembram da utilidade desta uns meses depois, quando precisam que os seus descendentes passem de ano, têm mais importância aos olhos de tutela e direções do que os infelizes dos professores, que consumiram centenas de horas na escola, entre burocracia e pedagogia com os seus alunos e cuja opinião, no final, pouco conta. É toda uma subversão de prioridades, valores e responsabilidades que deixa o ensino à mercê de uma sociedade decadente que se vai atolando num pântano de mediocridade crescente que inunda as escolas; escolas onde mandam mais os de fora do que aqueles que lá estão dentro, desde a altura em que inventaram os rankings e o diretor passou a ser eleito por todos menos pelos professores.


Professores que são vistos como um obstáculo à necessidade eleitoralista dos governos de apresentarem números espantosos de sucesso escolar. Por isso, há que criar obstáculos aos que queiram dar negativas e fazer a vida num inferno para o caso de equacionarem, sequer, reprovar um louvável aluno candidato a abrilhantar os números das estatísticas. Para os profetas das novas pedagogias da desresponsabilização e dos psicólogos emissários do perdão, o vocábulo “negativa” passou a ser palavra maldita e obscena, por traumatizar as criancinhas, muitas delas já com barba; solução – substituir por outras palavras mais doces cujo significado os alunos nem entendem e, de preferência, para que não haja complicações, abolir mesmo as negativas das escolas para todos viverem em paz e harmonia. Ámen!
Não é, pois, nenhum mistério o motivo pelo qual, nos dias de hoje, os professores evitam dar as tão esconjuradas “negativas”.


Um panorama claramente intimidatório e desencorajador orquestrado por uma classe política criminosa que está a destruir os valores, a exigência e a responsabilidade em favor da criação de uma sociedade medíocre que serve na perfeição os seus interesses. Estadistas que, verbalmente, são vigorosos defensores da escola pública, mas que, na prática, preferem ter os seus filhos nos colégios privados onde estão a salvo das políticas promotoras da ignorância ditadas pelos seus papás.
Tudo isto e muito mais transformou a profissão docente num ofício desprezado que está já a ser abandonado. Poucos são os que ainda querem enveredar por este caminho devido à enorme instabilidade, ao mau ambiente reinante e ao bournout resultante de burocracia e pressão intermináveis, contribuindo para a ruína de uma sociedade sem futuro onde começa a abundar a falta de valores e de polidez. Com este facilitismo instalado, o défice de exigência e o desprezo por valores e pelo mérito, estamos a criar futuros cidadãos sem criatividade nem espírito crítico, ignorantes, preguiçosos, parasitas, irresponsáveis e sem civismo nem respeito pelos outros.


De resto, uma espécie de professores em vias de extinção, ainda luta recusando-se a entregar a avaliação e o processo educativo a pais cuja única aspiração é a de que o seu filho tenha positiva e passe de ano; que rejeitam abrir mão do que ainda resta do ensino e deixar definitivamente que se veja a escola apenas como um armazém de alunos onde um aglomerado de professores os vai ocupando enquanto os pais estão a trabalhar.


Assim aconteceu, ao fim de mais um dia de avaliações…
Parco nas palavras, regressamos a casa na companhia das nuvens que abandonaram o firmamento para pairar incriminatórias sobre as nossas cabeças, testemunhas oculares da culpa que carregamos na pasta por sentirmos que, de certa forma, prostituímos a nossa dignidade profissional.


Outrora, eu tivera um sonho; um sonho que vai ficando cada vez mais distante neste falso mundo pré-feito…

                Carlos Santos


NOTA À MARGEM DO AUTOR DESTE ARTIGO
sobre alguns BIGORRILHAS docentes:

No meio deste vergonhoso retrato do que se passa no ensino há muitas décadas, há ainda a ressaltar os docentes-mercenários que, mais papistas do que o papa e engajados ideologicamente com este Sistema, tentam condicionar os colegas a esta repugnante política de falso sucesso.

Senão vejamos:

São estas bigorrilhas que, apesar da falta de sucesso de muitos alunos, não dão uma única negativa com vistas ao seu próprio sucesso pessoal.

São estas bigorrilhas que, condicionados pela ideologia dominante, vão para as reuniões de avaliação a propor sistemáticas subida de notas a alunos com 4 ou até 5 negativas, para que as respectivas escolas, e principalmente eles próprios, fiquem bem (mal) nos rankings de sucesso.

São estas bigorrilhas que verberam os colegas que honestamente dão notas onde há algumas merecidas negativas.

São estas bigorrilhas que, para terem bons comportamentos e vincularem a sua ideologia de esquerda, transformam dezenas de aulas sucessivas do 3.º Ciclo numa espécie de “Cinema Paraíso”, com a projecção aula a aula, nem sempre correctamente sumariadas para ocultarem o embuste, de sucessivos episódios dos filmes: «Conta-me como foi» e «25 Abril»..., deste modo o tempo vai passando, mantendo a passividade dos discentes e furtando-se o bigorrilha à indisciplina que grassa na escola portuguesa...

São estes bigorrilhas que engendram Unidades de Trabalho nas quais os seus alunos passam muitas dezenas de horas, por vezes até meses, a fazer muitas centenas, senão milhares, de cravos vermelhos em papel para as suas comemorações da revolução do 25 de Abril; assim como milhares de estrelas de Natal para decorar as frondosas árvores do recreio e do interior das respectivas escolas...

São alguns deste bigorrilhas que perdem aulas inteiras a investigar se os “militares de Abril usavam botas de cor preta ou castanha”, pois, a televisão da época, eram só a preto e branco...

São alguns destes bigorrilhas que, muitos deles já com 40 anos ou mais, após muitos anos de docência sem as habilitações mínimas recomendáveis, ascenderam às respectivas licenciaturas – nem sempre na sua área de docência –, graças a um “habilidoso” processo de “equivalências”, assim como fazem dezenas de acções de formação, muitas delas sob temas hilariantes em relação à sua área de docência. Tudo isto sob um governo de um habilidoso e competente “licenciado” ao domingo...

São estes bigorrilhas que, para demonstrar o seu domínio (?) da informática, engendram testes feitos pela NET, que os alunos resolvem em casa com o auxílio de quem esteja por perto, com o objectivo de os avaliar todos com 5, que é a nota máxima. Assim se obtém o sucesso do “bom” professor e da respectiva turma. Os colegas que não alinharem em mais este embuste serão rotulados de “incompetentes”.

Quanto ao valor real destes competente bigorrilhas, basta ler a redacção das suas actas, a estrutura do seu discurso verbal, e observar o seu “background” cultural ...

Deste modo, estamos a comprometer as gerações mais jovens com os exemplos que lhes damos e com a cobardia própria de quem, de modo vesgo, apenas olha para o seu umbigo...

                JT

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